O reveillón de Marques Casara
Saí de Floripa no meio da tarde e fui dormir em Morretes, a 50 quilômetros de Curitiba, algo do tipo "entre o mar e a montanha", três mil habitantes.
passei a virada de ano no alto da torre da igreja, em companhia de um simpático corcunda com problemas neurológicos, responsável por badalar o sino no momento exato da virada para 2004.
Homem de poucas palavras.
Entre 11 horas e meia noite tentei estabelecer um diálogo racional com ele, o que não consegui. Quando faltava dez para a meia noite o homem começou a ficar agitado. Andava de um lado para o outro, nervoso.
Eu e minha mulher éramos os únicos turistas no lugar. O homem agitava os braços e apontava para o alto da Igreja. "Vai pular", pensei.
A quatro minutos do novo ano o corcunda já estava fora de si. Balbuciava palavras esquisitas e apontava para o alto da Igreja.
Até que abriu uma porta lateral. Revelou-se uma escada de madeira velha e instável.
o Homem suava e agitava os braços em frente a escada.
___ "Está nos chamando" - comentei.
___ "Vai lá. Tô bem, aqui mesmo" - disse minha mulher.
___ "Vamos! Tá nos chamando para subir na torre".
E eis que a dois minutos do momento final subíamos a escada, aos tropeções. O corcunda gesticulava e pronunciava palavras só dele. A escada rangia. Nos degraus, imagens de santos, potes e velas cobertas de sujeira. Das paredes sem pintura vertia uma água enferrujada.
Ao chegarmos no alto da torre vimos a cidade iluminada pelas lâmpadas de natal.
Duas cordas pendiam da cúpula escura que guardava os sinos, alguns metros acima.
O corcunda enrolou uma corda em cada braço, olhou para o fosso da torre e projetou-se no vazio.
Os sinos responderam imediatamente. O corcunda sacolejava no buraco da torre. Os sinos gritavam o nascer de 2004.
o homem tinha uma impressionante habilidade para dar a cada sino uma cadência particular.
Quando tudo ficou em silêncio o homem desenrolou as cordas dos braços e limpou o suor da testa. Não disse nada. Desceu a escada, trancou a porta e caminhou em direção a uma rua escura. Vai pra casa, pensei.
Sentei na escadaria da igreja e fiquei com a imagem do corcunda. Quando ele parou de tocar os sinos, livrou-se das cordas e olhou nos meus olhos de um jeito que nunca vou esquecer. Percebi que aquele homem entendia o significado da vida. Queria ser como ele.
(Por Marques Casara)
9.1.04
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