26.1.06
15.12.05
14.12.05
Em maio de 2001 a repórter Adriana Kuchler reuniu, num etílico papo de mesa de bar, três dos principais chargistas de Santa Catarina: Frank Maia, Zé Dassilva e Sérgio Bonson, que morreu na semana passada. Falaram de jornalismo, arte, censura, inspiração e mais um monte de coisa. A entrevista terminou de um jeito inusitado. Esse texto ia ser publicado no Zero, jornal-laboratório do curso de jornalismo da UFSC, mas o jornal não foi impresso e o material permanecia inédito até agora. Bom proveito.
~
Uma estranha no ninho
Com muita cachaça na cabeça, os três principais cartunistas de Santa Catarina se juntaram para falar sobre jornalismo, censura e política. Com Bonson, Frank Maia, Zédassilva e um intruso desconhecido juntos não dava pra esperar uma conversa séria: a entrevista terminou em porrada. Muito bem encenada.
Vocês acham que o que vocês fazem é jornalismo?
Frank Maia- Porra, é puro jornalismo. A diferença entre eu e o cara que escreve é justamente porque eu não sei escrever e ele não sabe desenhar. Só essa diferença.
Bonson- Eu discordo desse cara aí.
FM- Ele não discorda nada. Ele tá bêbado.
B- Eu discordo.
FM- Eu acho que o que a gente faz é jornalismo puro, o que a gente faz é entender a situação, a gente tem um trabalho de articulista, de colunista, de editor, é um trabalho... A gente lê tudo que acontece no dia, seleciona o principal fato. É como selecionar manchete do jornal. A gente dá a nossa opinião, é como se a gente fosse um articulista, um editorialista.
Zédassilva- A diferença é que a gente não ganha nada.
B- Eu discordo. Eu acho que... Eu discordo e concordo. Eu não sou mineiro mas eu discordo e concordo ao mesmo tempo. Eu acho o seguinte: que como jornalista, realmente aí eu tô na área, a gente realmente é jornalista. Mas eu acho que a gente às vezes pode fazer uma charge sobre a manchete, factualérrima, né? Mas também pode fazer uma charge como um articulista de fundo.
FM- Isso não é ser jornalista, né?
B- Ah, porra, mas tem uma diferença de tempo. Tem a longa duração e a curta duração. Então, por exemplo, um cartunista que nós dois admiramos, o Angeli. Não é a Angelita, a Angelita nós dois também admiramos. Ahhh! (Risos) Então eu acho que a gente trabalha pra jornal e evidentemente ninguém escreve tese acadêmica, né? ( Os outros conversam.) Mas assim... Ô animal, isso tem que sair na entrevista, é um crima, não é RBS aqui. (Risos). Seguinte, fulaninho (incompreensível), ele faz charges metafísicas, sobre a condição humana, se aproveita de um fato banal, da miséria, aquela que ele faz debaixo do viaduto, miserê e tarará, aquilo são cartuns. São meditações pela condição humana.
FM- Filosofada.
B- Filosofada, mas bem filosofada. Não é que são bem desenhadas, né, diga-se de passagem. Não tem literatice, ele faz muito bem isso.
Revista- Então ele não é jornalista?
B- Não. Ele é jornalista.
FM- Então, cara.
B- Mas eu fiz uma pequena distinção, animal.
Zé- Chama do jeito que for pra chamar, cara. Jornalismo, eu acho que é assim, tu pegar a informação e filtrar ela pro leitor, ou pro telespectador ou pro ouvinte. Então, se a charge é isso, então também é jornalismo. Mas eu acho que é um pouco mais que jornalismo. É jornalismo-arte.
FM- Jornalismo é arte? Lembra aquela discussão?
B- OLHA EU...
FM- Não precisa gritar. Não precisa impor a sua opinião.
B- É que quando eu bebo eu fico enfático.
FM- Então pára de beber. O que eu penso é o seguinte: charge é jornalismo sim, não tem jeito. O Bonson discordou e acabou concordando.
B- Eu discordei e concordei, cavalo.
FM- É lógico. Porque o que a gente faz é que o invés de escrever, a gente desenha.
B- Exatamente.
FM- Então porque você tá discordando? Muita cachaça na mente, acontece isso, né Zé? ... O Zé tá dormindo. O Zé babou.
Revista- Isso vai ser registrado na entrevista. Agora cada um pode falar quem vocês mais gostam de zoar? O político, o personagem...
B- O careca. O Amin, porra.
FM- Olha, quem eu mais gosto de zoar é o contraste. Não é a zueira grátis, o que eu gosto de zoar é sacar o absurdo e colocar isso na charge.
Revista- Dá um exemplo.
FM- Um exemplo é o cara roubar dois bilhões da Sudam e você não saber quantos zeros tem isso. O cara roubar dois bilhões da Sudene. Não, dois bilhões e quinhentos, ganhou, e tu não saber quantos zeros tem isso. Enquanto tu tá se cagando pra cobrir o cheque especial. É isso. Tem um cara ganhando 180 de salário mínimo. (Chega o intruso) Quem é esse cara aí?
Zé- É o camera man.
FM- É esse contraste que eu gosto de zoar pra ver se os caras mexem o rabo. O Casseta e Planeta tinha uma camiseta que eu acho linda que é “Ê povinho bunda”, entendeu? Porque nós fizemos uma puta exposição “O povo tem mais é que se fuder” é justamente sobre isso. O cara se fode, chega na próxima eleição o cara troca o voto por uma carrada de brita, por um tijolo, por um banheiro na casa dele. Porra, tem mais é que se fuder quem pensa assim.
Zé- Ô, deixa eu dizer uma coisa: o Frank tá ficando chato. Ele tá falando muito sério.
FM- Desculpa, Zé.
Zé- Pra mim, acho que é o Amin, mas eu gosto de pegar também duas coisas que não tem nada a ver e fazer uma relação com elas. Tipo: o Fernandinho Beiramar foi preso, fazer uma relação dele com os senadores que tão aí pra ser cassados. Uma vez eu misturei um lance da novela com um lance do Itamar, que depois saiu na Veja, foi publicada. Acho que é uma fórmula legal, misturar duas coisas que não tem nada a ver.
Revista- Que charge você gostariam de fazer mas não fariam porque com certeza seriam censurados?
B- (se dirigindo ao Frank) Ah, por exemplo, aquela que eu te mandei por e-mail que era pornoca. Era o FHC nu, numa cadeira, e aí ele tá com o pinto, a Nadir tá chupando e o FHC tá dizendo “Ah, dona Nadir, sabia que a senhora ia entender o espírito da coisa. É pra botar a boca nesse trombone.” Aí ele teve uma reação moralista.
FM- Eu fiquei chocado. Eu só acho que o Bonson tá numa idade que tá precisando cruzar. Só pensa nisso.
Revista- E você?
FM- Acho que não tem essa. Eu faço o que eu quero, o que eu acho que é certo. A censura não vai vir de mim.
Revista- Não existe nenhum assunto proibido?
Zé- Em todos os jornais que eu trabalhei aconteceu isso. Em algumas o cara até se passa, como essa aí do Bonson. Não é censurado. O cara diz assim “ Você quer publicar isso, bicho? Vai tu pra rua e eu.” Teu chefe te fala.
FM- Eu trabalho num jornal, eu sei qual é a linha do jornal, que tipo de piada eu posso fazer. Se eu quiser ser censurado, amanhã eu sou censurado. Só que eu não sou burro. Eu posso fazer as coisas de um jeito que eu não seja censurado.
Revista- Mas você já foi censurado.
FM- Olha, de cinco anos de charge, uma vez, uma editora, que eu adorava, chegou pra mim e falou “Você pode publicar essa charge”.
B- Qual era a charge?
FM- Não vou falar.
Todos- Ahhh...
B- Fala! Fala! Fala!
FM- Se vocês querem ser heróis, eu não quero ser herói. Ela falou assim “Você pode publicar essa charge, mas amanhã vai dar uma merda isso aí. Você tem outra charge?” Eu falei “Eu tenho mais 20 charges”, “Pode pegar uma dessas suas 20 charges e colocar no jornal amanhã pra gente não se incomodar.” Eu falei “ótimo”. Eu trabalho numa empresa, eu não tenho um jornal meu. Eu já tive. Eu sei que tem um monte de questões comerciais. Vem com essa ilusãozinha, sou combativo. Vai se fuder. Não existe isso. O cara fala do ACM, tudo bem. Agora, fala do carinha daqui, que anuncia aqui, que sustenta o jornal aqui. Não tem essa ingenuidade. Não existe mais isso. O Bonson já foi processado já ganhou uma grana por causa disso.
B- Já fui pra rua do jornal.
Revista- De qual jornal?
B- Ah, o nome do jornal? Será que merece ser citado?
Revista- Claro.
B- É o Estado. Aquela coisa lá. Aquele jornal filha da puta, que ele me deve um acordo judicial e não paga.
FM- Aproveita e manda um recado.
B- O Comelli aquele ladrão filho da puta. Outras vezes eu fui aconselhado, aí o Frank tem razão, que a gente tem que ter um bom senso. Se as Casas Pernambucanas, se é que ainda existem, anunciam no jornal, você não vai fazer uma charge metendo pau nas Casas Pernambucanas. Agora, isso aí , tu pode driblar falando do capitalismo em geral e tal.
Revista- Mas por que você foi processado?
B- Pois é, é que quando começou a abertura, eu pensei “liberou geral”. Como o Figueiredo gostava de cavalos, eu botei um cavalo com quatro estrelas. Aí ligaram pro jornal e pediram a minha cabeça. “Ah, vai tira esse cara.” Outra vez eu fui censurado, eu prestei um serviço de utilidade pública porque era um cara duma companhia, esqueci o nome agora. Tinha uma companhia que explorava ilegitimamente, ilegalmente um pedaço da ilha do Campeche. Aí eu soube que o delegado do SPU, do Serviço do Patrimônio da União, tinha dado três mil metros pra Pioneira da Costa. Aí eu fiz uma charge, botei os dois num barco e o dono da Pioneira da Costa jogando uma rede, pegando três mil metros e o cara dizendo “Legal, chefe, por enquanto pegamos três mil metros.” Aí ele me processou e se fodeu porque eu ganhei o processo. Então, eu acho que nessas situações tem mais é que fazer porque é um serviço de utilidade pública.
FM- O teu currículo ficou enriquecido?
B- Eu acho.
FM- Eu também.
Revista- Existe algum tipo de competição entre vocês?
FM - NÃO. (finge dar um soco no Bonson. Risos.) Existe o seguinte: paralelismo de idéias, às vezes nem é com o Zé, nem com o Bonson. Às vezes, você faz uma charge e tem um cara mané lá em Pindamonhangaba que faz uma charge igualzinha à minha. Outro dia o Bonson me passou um e-mail e ele falou “Olha, bicho, imagina, a Nadir sendo sanduichada pelo ACM e pelo Arruda.” Filho da puta lá em Brasília fez a charge e eu mandei pra ele. Olha aqui, pensou igualzinho. É o paralelismo de idéias. Já aconteceu do Zé fazer charge igual a minha, o Bonson, eu fazer igual a deles. Normal.
Revista- O que vocês fazem quando não tem nenhum acontecimento importante no dia? ( o intruso, que vinha incomodando desde o começo da entrevista, fala sem parar)
FM- Quando não tem nada importante...
B- (Pro desconhecido) Ô Jacaré, cala a tua boca. CALA A BOCA! (E o cara continua.)
FM- Vou comprar uma bengala.
Zé- Se não tiver nada acontecendo, sempre vai ter o jornal, vai ter que ter manchete. Sempre vai ter alguma coisa acontecendo. Pode fazer em cima de alguma coisa que já aconteceu. No dia seguinte, deu uma repercutida. Tipo, caiu a plataforma da Petrobrás, isso é assunto pra semana inteira.
B- Cala a boca! PÁRA DE ENCHER O SACO! PORRA!
FM- Hehehe. Esse é o meu velhinho. O lance é o seguinte: nada é mais velho do que jornal de ontem. Essa frase...
B- (sempre falando pro cara) Tá querendo o quê?
Revista- É da primeira fase.
FM- É da primeira fase. Tutorial one.
B- Quê?
FM- Tutorial one. Hã! Agora eu eruditizei.
B- É aramaico?
FM- É aramaico. Todo dia muda alguma coisa. Todo dia tem uma manchete.
B- Todo dia tu muda a cueca, por exemplo.
FM- Tu não porque tu não usa cueca.
B- Ah, eu não. É verdade.
Zé- Pior que eu não tô usando também.
FM- Eu acho que o jornalismo que a gente faz, todo dia tem alguma coisa que mudou. Às vezes, o assunto é fraco, a gente pena. A gente pensa na piada velha, vamos reformular. Tem dia de agonia, mas os dias que a gente anda vivendo ultimamente, não tem agonia. Tem abundância de assunto. Tem uma overdose de coisa.
Zé- Olha, hoje, por exemplo, teve o negócio do Fernandinho Beiramar. ( Frank e Bonson se abraçam e ficam cochichando). Olha que momento bonito! Levaram ele pra Brasília, iam levar pro Rio, levaram pra Brasília. A charge tá pronta. O assunto já nasce...
Revista- Que charge que você fez?
Zé- Que ele tava indo lá pra dar autógrafo pros políticos. Esse é o caso que a notícia já nasce ridícula.
Revista- Vocês três são cartunistas dos principais jornais do estado. Existe mercado pra quem quiser ser cartunista aqui?
FM- NÃO. Inclusive, eu queria aconselhar os novos cartunistas a procurar outro ramo de emprego. No Paraná, tá precisando, no Acre. Em Rondônia, tem vaga pra cartunista iniciante. E eu quero mandar um abraço pro Romeu, pro Fred, pra aquela galera lá e mandar eles pro inferno. (Risos)
Revista- Vocês desaconselham, então?
B- Desaconselho. O que que a gente desaconselha mesmo?
FM- Mentira. A gente adora eles, mas é melhor eles fazerem outra coisa na vida. Parece que vai rolar o concurso dos correios. Fala pro Fred e pro Romeu fazerem o concurso dos correios.
B- CALA ESSA BOCA, CARA! (o estranho continua a se meter na conversa)Revista.- Vocês trabalham em outras áreas do jornalismo além da charge?
Zé- O cara faz o que o mercado pede porque tu precisa. Muitas vezes, fiquei fazendo editoração pra ganhar a vida. E as vezes alguém precisa de um texto, tu escreve.
B- CALA A BOCA, RAPAZ. VAI TOMAR NO CU.
Zé- Fica, assim, de noite, pensando como ganhar. Cada um tem um jeito.
B- CARA CHATO. (Bonson avança no sujeito.) SAI PRA LÁ, SEU PENTELHO. PORRA. SAI DAQUI, MEU. SAI DAQUI QUE EU VOU TE ENFIAR PORRADA.
Bonson dá uns socos no cara, enquanto o Frank tenta segurá-lo. O outro nem se mexe. Confusão na livraria. Arrastam cadeiras e mesas. Ninguém sabe o que fazer. Acabam botando o cara pra fora. Depois da briga Frank vem confessar que estimulou Bonson a partir pra cima do intrometido:
- Vai, que eu te seguro.
Bonson ainda tentou se justificar:
- Nós tamos ali e o cara tá o tempo todo interrompendo e eu falava “Cala a boca. Cala a boca.” Cada vez num tom mais alto. Aí, por um processo químico, o cara perde o controle. Eu perdi o controle. Tá louco. Gravasse isso? Vou tomar uma outra agora pra...
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Uma estranha no ninho
Com muita cachaça na cabeça, os três principais cartunistas de Santa Catarina se juntaram para falar sobre jornalismo, censura e política. Com Bonson, Frank Maia, Zédassilva e um intruso desconhecido juntos não dava pra esperar uma conversa séria: a entrevista terminou em porrada. Muito bem encenada.
Vocês acham que o que vocês fazem é jornalismo?
Frank Maia- Porra, é puro jornalismo. A diferença entre eu e o cara que escreve é justamente porque eu não sei escrever e ele não sabe desenhar. Só essa diferença.
Bonson- Eu discordo desse cara aí.
FM- Ele não discorda nada. Ele tá bêbado.
B- Eu discordo.
FM- Eu acho que o que a gente faz é jornalismo puro, o que a gente faz é entender a situação, a gente tem um trabalho de articulista, de colunista, de editor, é um trabalho... A gente lê tudo que acontece no dia, seleciona o principal fato. É como selecionar manchete do jornal. A gente dá a nossa opinião, é como se a gente fosse um articulista, um editorialista.
Zédassilva- A diferença é que a gente não ganha nada.
B- Eu discordo. Eu acho que... Eu discordo e concordo. Eu não sou mineiro mas eu discordo e concordo ao mesmo tempo. Eu acho o seguinte: que como jornalista, realmente aí eu tô na área, a gente realmente é jornalista. Mas eu acho que a gente às vezes pode fazer uma charge sobre a manchete, factualérrima, né? Mas também pode fazer uma charge como um articulista de fundo.
FM- Isso não é ser jornalista, né?
B- Ah, porra, mas tem uma diferença de tempo. Tem a longa duração e a curta duração. Então, por exemplo, um cartunista que nós dois admiramos, o Angeli. Não é a Angelita, a Angelita nós dois também admiramos. Ahhh! (Risos) Então eu acho que a gente trabalha pra jornal e evidentemente ninguém escreve tese acadêmica, né? ( Os outros conversam.) Mas assim... Ô animal, isso tem que sair na entrevista, é um crima, não é RBS aqui. (Risos). Seguinte, fulaninho (incompreensível), ele faz charges metafísicas, sobre a condição humana, se aproveita de um fato banal, da miséria, aquela que ele faz debaixo do viaduto, miserê e tarará, aquilo são cartuns. São meditações pela condição humana.
FM- Filosofada.
B- Filosofada, mas bem filosofada. Não é que são bem desenhadas, né, diga-se de passagem. Não tem literatice, ele faz muito bem isso.
Revista- Então ele não é jornalista?
B- Não. Ele é jornalista.
FM- Então, cara.
B- Mas eu fiz uma pequena distinção, animal.
Zé- Chama do jeito que for pra chamar, cara. Jornalismo, eu acho que é assim, tu pegar a informação e filtrar ela pro leitor, ou pro telespectador ou pro ouvinte. Então, se a charge é isso, então também é jornalismo. Mas eu acho que é um pouco mais que jornalismo. É jornalismo-arte.
FM- Jornalismo é arte? Lembra aquela discussão?
B- OLHA EU...
FM- Não precisa gritar. Não precisa impor a sua opinião.
B- É que quando eu bebo eu fico enfático.
FM- Então pára de beber. O que eu penso é o seguinte: charge é jornalismo sim, não tem jeito. O Bonson discordou e acabou concordando.
B- Eu discordei e concordei, cavalo.
FM- É lógico. Porque o que a gente faz é que o invés de escrever, a gente desenha.
B- Exatamente.
FM- Então porque você tá discordando? Muita cachaça na mente, acontece isso, né Zé? ... O Zé tá dormindo. O Zé babou.
Revista- Isso vai ser registrado na entrevista. Agora cada um pode falar quem vocês mais gostam de zoar? O político, o personagem...
B- O careca. O Amin, porra.
FM- Olha, quem eu mais gosto de zoar é o contraste. Não é a zueira grátis, o que eu gosto de zoar é sacar o absurdo e colocar isso na charge.
Revista- Dá um exemplo.
FM- Um exemplo é o cara roubar dois bilhões da Sudam e você não saber quantos zeros tem isso. O cara roubar dois bilhões da Sudene. Não, dois bilhões e quinhentos, ganhou, e tu não saber quantos zeros tem isso. Enquanto tu tá se cagando pra cobrir o cheque especial. É isso. Tem um cara ganhando 180 de salário mínimo. (Chega o intruso) Quem é esse cara aí?
Zé- É o camera man.
FM- É esse contraste que eu gosto de zoar pra ver se os caras mexem o rabo. O Casseta e Planeta tinha uma camiseta que eu acho linda que é “Ê povinho bunda”, entendeu? Porque nós fizemos uma puta exposição “O povo tem mais é que se fuder” é justamente sobre isso. O cara se fode, chega na próxima eleição o cara troca o voto por uma carrada de brita, por um tijolo, por um banheiro na casa dele. Porra, tem mais é que se fuder quem pensa assim.
Zé- Ô, deixa eu dizer uma coisa: o Frank tá ficando chato. Ele tá falando muito sério.
FM- Desculpa, Zé.
Zé- Pra mim, acho que é o Amin, mas eu gosto de pegar também duas coisas que não tem nada a ver e fazer uma relação com elas. Tipo: o Fernandinho Beiramar foi preso, fazer uma relação dele com os senadores que tão aí pra ser cassados. Uma vez eu misturei um lance da novela com um lance do Itamar, que depois saiu na Veja, foi publicada. Acho que é uma fórmula legal, misturar duas coisas que não tem nada a ver.
Revista- Que charge você gostariam de fazer mas não fariam porque com certeza seriam censurados?
B- (se dirigindo ao Frank) Ah, por exemplo, aquela que eu te mandei por e-mail que era pornoca. Era o FHC nu, numa cadeira, e aí ele tá com o pinto, a Nadir tá chupando e o FHC tá dizendo “Ah, dona Nadir, sabia que a senhora ia entender o espírito da coisa. É pra botar a boca nesse trombone.” Aí ele teve uma reação moralista.
FM- Eu fiquei chocado. Eu só acho que o Bonson tá numa idade que tá precisando cruzar. Só pensa nisso.
Revista- E você?
FM- Acho que não tem essa. Eu faço o que eu quero, o que eu acho que é certo. A censura não vai vir de mim.
Revista- Não existe nenhum assunto proibido?
Zé- Em todos os jornais que eu trabalhei aconteceu isso. Em algumas o cara até se passa, como essa aí do Bonson. Não é censurado. O cara diz assim “ Você quer publicar isso, bicho? Vai tu pra rua e eu.” Teu chefe te fala.
FM- Eu trabalho num jornal, eu sei qual é a linha do jornal, que tipo de piada eu posso fazer. Se eu quiser ser censurado, amanhã eu sou censurado. Só que eu não sou burro. Eu posso fazer as coisas de um jeito que eu não seja censurado.
Revista- Mas você já foi censurado.
FM- Olha, de cinco anos de charge, uma vez, uma editora, que eu adorava, chegou pra mim e falou “Você pode publicar essa charge”.
B- Qual era a charge?
FM- Não vou falar.
Todos- Ahhh...
B- Fala! Fala! Fala!
FM- Se vocês querem ser heróis, eu não quero ser herói. Ela falou assim “Você pode publicar essa charge, mas amanhã vai dar uma merda isso aí. Você tem outra charge?” Eu falei “Eu tenho mais 20 charges”, “Pode pegar uma dessas suas 20 charges e colocar no jornal amanhã pra gente não se incomodar.” Eu falei “ótimo”. Eu trabalho numa empresa, eu não tenho um jornal meu. Eu já tive. Eu sei que tem um monte de questões comerciais. Vem com essa ilusãozinha, sou combativo. Vai se fuder. Não existe isso. O cara fala do ACM, tudo bem. Agora, fala do carinha daqui, que anuncia aqui, que sustenta o jornal aqui. Não tem essa ingenuidade. Não existe mais isso. O Bonson já foi processado já ganhou uma grana por causa disso.
B- Já fui pra rua do jornal.
Revista- De qual jornal?
B- Ah, o nome do jornal? Será que merece ser citado?
Revista- Claro.
B- É o Estado. Aquela coisa lá. Aquele jornal filha da puta, que ele me deve um acordo judicial e não paga.
FM- Aproveita e manda um recado.
B- O Comelli aquele ladrão filho da puta. Outras vezes eu fui aconselhado, aí o Frank tem razão, que a gente tem que ter um bom senso. Se as Casas Pernambucanas, se é que ainda existem, anunciam no jornal, você não vai fazer uma charge metendo pau nas Casas Pernambucanas. Agora, isso aí , tu pode driblar falando do capitalismo em geral e tal.
Revista- Mas por que você foi processado?
B- Pois é, é que quando começou a abertura, eu pensei “liberou geral”. Como o Figueiredo gostava de cavalos, eu botei um cavalo com quatro estrelas. Aí ligaram pro jornal e pediram a minha cabeça. “Ah, vai tira esse cara.” Outra vez eu fui censurado, eu prestei um serviço de utilidade pública porque era um cara duma companhia, esqueci o nome agora. Tinha uma companhia que explorava ilegitimamente, ilegalmente um pedaço da ilha do Campeche. Aí eu soube que o delegado do SPU, do Serviço do Patrimônio da União, tinha dado três mil metros pra Pioneira da Costa. Aí eu fiz uma charge, botei os dois num barco e o dono da Pioneira da Costa jogando uma rede, pegando três mil metros e o cara dizendo “Legal, chefe, por enquanto pegamos três mil metros.” Aí ele me processou e se fodeu porque eu ganhei o processo. Então, eu acho que nessas situações tem mais é que fazer porque é um serviço de utilidade pública.
FM- O teu currículo ficou enriquecido?
B- Eu acho.
FM- Eu também.
Revista- Existe algum tipo de competição entre vocês?
FM - NÃO. (finge dar um soco no Bonson. Risos.) Existe o seguinte: paralelismo de idéias, às vezes nem é com o Zé, nem com o Bonson. Às vezes, você faz uma charge e tem um cara mané lá em Pindamonhangaba que faz uma charge igualzinha à minha. Outro dia o Bonson me passou um e-mail e ele falou “Olha, bicho, imagina, a Nadir sendo sanduichada pelo ACM e pelo Arruda.” Filho da puta lá em Brasília fez a charge e eu mandei pra ele. Olha aqui, pensou igualzinho. É o paralelismo de idéias. Já aconteceu do Zé fazer charge igual a minha, o Bonson, eu fazer igual a deles. Normal.
Revista- O que vocês fazem quando não tem nenhum acontecimento importante no dia? ( o intruso, que vinha incomodando desde o começo da entrevista, fala sem parar)
FM- Quando não tem nada importante...
B- (Pro desconhecido) Ô Jacaré, cala a tua boca. CALA A BOCA! (E o cara continua.)
FM- Vou comprar uma bengala.
Zé- Se não tiver nada acontecendo, sempre vai ter o jornal, vai ter que ter manchete. Sempre vai ter alguma coisa acontecendo. Pode fazer em cima de alguma coisa que já aconteceu. No dia seguinte, deu uma repercutida. Tipo, caiu a plataforma da Petrobrás, isso é assunto pra semana inteira.
B- Cala a boca! PÁRA DE ENCHER O SACO! PORRA!
FM- Hehehe. Esse é o meu velhinho. O lance é o seguinte: nada é mais velho do que jornal de ontem. Essa frase...
B- (sempre falando pro cara) Tá querendo o quê?
Revista- É da primeira fase.
FM- É da primeira fase. Tutorial one.
B- Quê?
FM- Tutorial one. Hã! Agora eu eruditizei.
B- É aramaico?
FM- É aramaico. Todo dia muda alguma coisa. Todo dia tem uma manchete.
B- Todo dia tu muda a cueca, por exemplo.
FM- Tu não porque tu não usa cueca.
B- Ah, eu não. É verdade.
Zé- Pior que eu não tô usando também.
FM- Eu acho que o jornalismo que a gente faz, todo dia tem alguma coisa que mudou. Às vezes, o assunto é fraco, a gente pena. A gente pensa na piada velha, vamos reformular. Tem dia de agonia, mas os dias que a gente anda vivendo ultimamente, não tem agonia. Tem abundância de assunto. Tem uma overdose de coisa.
Zé- Olha, hoje, por exemplo, teve o negócio do Fernandinho Beiramar. ( Frank e Bonson se abraçam e ficam cochichando). Olha que momento bonito! Levaram ele pra Brasília, iam levar pro Rio, levaram pra Brasília. A charge tá pronta. O assunto já nasce...
Revista- Que charge que você fez?
Zé- Que ele tava indo lá pra dar autógrafo pros políticos. Esse é o caso que a notícia já nasce ridícula.
Revista- Vocês três são cartunistas dos principais jornais do estado. Existe mercado pra quem quiser ser cartunista aqui?
FM- NÃO. Inclusive, eu queria aconselhar os novos cartunistas a procurar outro ramo de emprego. No Paraná, tá precisando, no Acre. Em Rondônia, tem vaga pra cartunista iniciante. E eu quero mandar um abraço pro Romeu, pro Fred, pra aquela galera lá e mandar eles pro inferno. (Risos)
Revista- Vocês desaconselham, então?
B- Desaconselho. O que que a gente desaconselha mesmo?
FM- Mentira. A gente adora eles, mas é melhor eles fazerem outra coisa na vida. Parece que vai rolar o concurso dos correios. Fala pro Fred e pro Romeu fazerem o concurso dos correios.
B- CALA ESSA BOCA, CARA! (o estranho continua a se meter na conversa)Revista.- Vocês trabalham em outras áreas do jornalismo além da charge?
Zé- O cara faz o que o mercado pede porque tu precisa. Muitas vezes, fiquei fazendo editoração pra ganhar a vida. E as vezes alguém precisa de um texto, tu escreve.
B- CALA A BOCA, RAPAZ. VAI TOMAR NO CU.
Zé- Fica, assim, de noite, pensando como ganhar. Cada um tem um jeito.
B- CARA CHATO. (Bonson avança no sujeito.) SAI PRA LÁ, SEU PENTELHO. PORRA. SAI DAQUI, MEU. SAI DAQUI QUE EU VOU TE ENFIAR PORRADA.
Bonson dá uns socos no cara, enquanto o Frank tenta segurá-lo. O outro nem se mexe. Confusão na livraria. Arrastam cadeiras e mesas. Ninguém sabe o que fazer. Acabam botando o cara pra fora. Depois da briga Frank vem confessar que estimulou Bonson a partir pra cima do intrometido:
- Vai, que eu te seguro.
Bonson ainda tentou se justificar:
- Nós tamos ali e o cara tá o tempo todo interrompendo e eu falava “Cala a boca. Cala a boca.” Cada vez num tom mais alto. Aí, por um processo químico, o cara perde o controle. Eu perdi o controle. Tá louco. Gravasse isso? Vou tomar uma outra agora pra...
9.9.05
10.9.04
9.7.04
25.6.04
25.5.04
9.5.04
19.4.04
Dez microcontos
Por Dauro Veras
Assalto 1: perdeu ganhou
O otário era a cara do seu filho. Toma aí: grana pro ônibus.
~
Assalto 2: perdeu perdeu
O otário parecia seu filho, aquele ingrato. Passou-lhe o rodo.
~
Atraso
Um minuto mais cedo e pegaria o vôo fatídico. Cu pra lua.
~
Destino
Teria sido amor à primeira vista, mas ela dobrou a esquina.
~
Desilusão
Deu-lhe casa, comida, roupa lavada. Nada pediu. Nem ganhou.
~
Para Bandini
Ao ver o carro capotado, o cachorrinho riu. Fim da fuga, pneu.
~
Gato incompreendido
Trouxe uma oferenda - grátis -, mas ela gritou: "Barata!"
~
Reflexivo
Pensou em revidar o tapa, mas perdera o tempo e o espaço.
~
Impulsivo
Revidou o tapa de imediato. Até hoje não sabe se agiu bem.
~
O corno e o segredo desvendado
Abriu a porta em silêncio. Viu, chorou, fez a mala e se foi.
Por Dauro Veras
Assalto 1: perdeu ganhou
O otário era a cara do seu filho. Toma aí: grana pro ônibus.
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Assalto 2: perdeu perdeu
O otário parecia seu filho, aquele ingrato. Passou-lhe o rodo.
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Atraso
Um minuto mais cedo e pegaria o vôo fatídico. Cu pra lua.
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Destino
Teria sido amor à primeira vista, mas ela dobrou a esquina.
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Desilusão
Deu-lhe casa, comida, roupa lavada. Nada pediu. Nem ganhou.
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Para Bandini
Ao ver o carro capotado, o cachorrinho riu. Fim da fuga, pneu.
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Gato incompreendido
Trouxe uma oferenda - grátis -, mas ela gritou: "Barata!"
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Reflexivo
Pensou em revidar o tapa, mas perdera o tempo e o espaço.
~
Impulsivo
Revidou o tapa de imediato. Até hoje não sabe se agiu bem.
~
O corno e o segredo desvendado
Abriu a porta em silêncio. Viu, chorou, fez a mala e se foi.
Uniforme de trabalho
Por Diógenes Botelho
O uniforme de trabalho está sempre impecável. Muleta lustrada, bandagem na perna trocada a cada 12 horas, calça jeans arregaçada até o joelho da perna esquerda. Pentinho flamengo sempre no bolso da camisa de flanela e uma caixinha de sapatos, cuidadosamente forrada com papel de presente, pousada na murada. Elias dos Santos, 47 anos, cumpre expediente das 8 às 18 horas na porta do anexo II da Câmara dos Deputados, em Brasília. Seu escritório é emoldurado por uma grande gamela branca, virada de boca para baixo.
Vive de esmolas desde 1981. Desembarcou na capital federal, vindo do Piauí, carregando na trouxa de farinha de puba o sonho de progredir no Planalto Central. Filho do semi-árido nordestino, da seca e dos desmandos dos coronéis, Santos trabalhou como servente, pedreiro e chegou a mestre de obras. No dia 17 de setembro de 1995 uma laje caiu sobre sua perna, amputando os sonhos de futuro melhor para os seis filhos com dona Jacira, uma cabloca miudinha de Picos.
O tilintar de moedas é escasso na caixinha, notas muito raras. Por dia, em "dias bons", tira no máximo R$ 10. "Quem mais dá é quem não usa gravata e doa o troco do ônibus", conta o sertanejo que esbarra diariamente com políticos famosos e estrelas da mídia. Mas não reclama da vida. Construiu uma casinha em Planaltina e um dos filhos, Brasilino, vai fazer vestibular esse ano. "Quero que ele vire doutô, que use gravata e que dê pelo menos uma muedinha pra quem precisa".
Por Diógenes Botelho
O uniforme de trabalho está sempre impecável. Muleta lustrada, bandagem na perna trocada a cada 12 horas, calça jeans arregaçada até o joelho da perna esquerda. Pentinho flamengo sempre no bolso da camisa de flanela e uma caixinha de sapatos, cuidadosamente forrada com papel de presente, pousada na murada. Elias dos Santos, 47 anos, cumpre expediente das 8 às 18 horas na porta do anexo II da Câmara dos Deputados, em Brasília. Seu escritório é emoldurado por uma grande gamela branca, virada de boca para baixo.
Vive de esmolas desde 1981. Desembarcou na capital federal, vindo do Piauí, carregando na trouxa de farinha de puba o sonho de progredir no Planalto Central. Filho do semi-árido nordestino, da seca e dos desmandos dos coronéis, Santos trabalhou como servente, pedreiro e chegou a mestre de obras. No dia 17 de setembro de 1995 uma laje caiu sobre sua perna, amputando os sonhos de futuro melhor para os seis filhos com dona Jacira, uma cabloca miudinha de Picos.
O tilintar de moedas é escasso na caixinha, notas muito raras. Por dia, em "dias bons", tira no máximo R$ 10. "Quem mais dá é quem não usa gravata e doa o troco do ônibus", conta o sertanejo que esbarra diariamente com políticos famosos e estrelas da mídia. Mas não reclama da vida. Construiu uma casinha em Planaltina e um dos filhos, Brasilino, vai fazer vestibular esse ano. "Quero que ele vire doutô, que use gravata e que dê pelo menos uma muedinha pra quem precisa".
12.4.04
(em construção)
Por Nilva Bianco
Só porque lhe sorri
Dia desses uma senhora me olhou
como se eu fosse um anjo
Anjo, eu?!
Se fosse, teria que lavar com creolina
Minhas asas negras de poluição,
Se fosse, seria estraçalhado pelos helicópteros
no céu da cidade.
Se fosse anjo,
Teria que acudir meninos atordoados,
consolar mendigos e desvalidos,
amparar velhos de barbas sujas.
Guiá-los até o juízo final.
Sofrer com a dor alheia.
Amar incondicionalmente.
Dia desses uma senhora me olhou
como se eu fosse um anjo
Anjo, eu?
Não, foi só distração.
Por Nilva Bianco
Só porque lhe sorri
Dia desses uma senhora me olhou
como se eu fosse um anjo
Anjo, eu?!
Se fosse, teria que lavar com creolina
Minhas asas negras de poluição,
Se fosse, seria estraçalhado pelos helicópteros
no céu da cidade.
Se fosse anjo,
Teria que acudir meninos atordoados,
consolar mendigos e desvalidos,
amparar velhos de barbas sujas.
Guiá-los até o juízo final.
Sofrer com a dor alheia.
Amar incondicionalmente.
Dia desses uma senhora me olhou
como se eu fosse um anjo
Anjo, eu?
Não, foi só distração.
Campos Elíseos
Por Nilva Bianco
Na avenida,
Manhãzinha ainda,
desfile de tipos:
estoquistas, balconistas, analistas
a caminho da lida.
Meninas saídas dos inferninhos
precisam dormir,
exauridas de strip-teases,
uísque de quinta
e rapidinhas que aliviam
o holerith dos imbecis.
As marquises
viram abrigos de famílias
e meninos encardidos.
A pinga é antídoto pro frio,
pãozinho dormido
alivia a barriga vazia,
mijo se infiltra no piche da avenida.
Nas padarias,
dobradinha a cinco pila
e azia de brinde pro dia.
Na esquina, polícia e trafica
dividem o ilícito,
barraquinhas comerciam porcarias,
travestis desfilam seu fastio.
Nos cortiços carcomidos,
famílias compartilham clandestinas
seus dias perdidos.
Nas partidas de quinta, destino Piauí,
O sorriso doído do nordestino
que foi cuspido pela big city.
Manhãzinha, avenida sumindo de vista.
Por Nilva Bianco
Na avenida,
Manhãzinha ainda,
desfile de tipos:
estoquistas, balconistas, analistas
a caminho da lida.
Meninas saídas dos inferninhos
precisam dormir,
exauridas de strip-teases,
uísque de quinta
e rapidinhas que aliviam
o holerith dos imbecis.
As marquises
viram abrigos de famílias
e meninos encardidos.
A pinga é antídoto pro frio,
pãozinho dormido
alivia a barriga vazia,
mijo se infiltra no piche da avenida.
Nas padarias,
dobradinha a cinco pila
e azia de brinde pro dia.
Na esquina, polícia e trafica
dividem o ilícito,
barraquinhas comerciam porcarias,
travestis desfilam seu fastio.
Nos cortiços carcomidos,
famílias compartilham clandestinas
seus dias perdidos.
Nas partidas de quinta, destino Piauí,
O sorriso doído do nordestino
que foi cuspido pela big city.
Manhãzinha, avenida sumindo de vista.
7.4.04
A vantagem é que dura apenas uma semana
Por Emerson Gasperin
Assim como existe a Fashion Week, o Ano Internacional do Idoso, o Mês da Desgraça e o Dia da Mentira, há a Semana Caetano Veloso. É o período que cerca o lançamento de um novo disco do artista, quando todas as mídias unem-se para ouvir o que o semi-deus de Santo Amaro da Purificação tem a dizer ao Brasil, ao mundo e, conforme a disposição da divindade, até ao planeta Sedna. Em intervalos irregulares - a última edição ocorrera em 2002 -, a realização do evento mobiliza veículos das mais variadas tendências políticas, religiosas e sexuais. O Caso Waldomiro, a dieta de Beverly Hills, o meio-campo do Flamengo, o vencedor do Big Brother, a descoberta da cura para a gota; nada escapa da opinião panorâmica do autodenominado “Velosão” (sic).
Engrossando o coro dos bafejados pela sapiência tropicalista, é seu recente trabalho - A Foreign Sound, composto por regravações de standards norte-americanos - que vai preencher as linhas de hoje. Em 23 faixas, Caetano Veloso visita clássicos de Irving Berlin, George Gershwin, Cole Porter, Duke Ellington, Stevie Wonder, Paul Anka, Bob Dylan e Elvis Presley, entre outros. Trata-se do tipo de empreitada que nem é necessário escutar para perceber que deve ser genial. Afinal, reúne clássicos que venceram as restrições do tempo cantadas pela voz que desafiou todas as convenções poéticas ao rimar “eta, eta, eta” com “Tieta”. Os arranjos? Ah, ninguém liga para isso. Mas, se ligasse, também constataria que são impecáveis, alternando-se entre a reverência pura e simples ao original e a rebeldia iconoclasta do mais famoso intérprete de Peninha.
Feita a descrição do produto, saltam ao estômago duas releituras. Uma, “Feelings”, é abordada de forma séria, hierática, como merece o hit supremo do ianque carioca Morris Albert. A outra, “Come As You Are”, desnuda a relação esquizofrênica que Caetano Veloso mantém com a banda de Kurt Cobain. Às vezes, o Nirvana “é um lixo, se comparado a Ivan Lins”. Às vezes, é o último sopro de renovação experimentado pelo rock. A julgar pela versão contida em A Foreign Sound, Caetano estava naqueles dias em que acreditava piamente na primeira opção. Fica a sugestão para que, caso seja tramado um Volume 2, ele não deixe de incluir “Longview”, do Green Day, e “Hey Ya”, do Outkast, que também renderiam discussões proctológicas acerca da integridade artística do projeto.
A especulação começou já na data marcada para apresentar a obra-prima à imprensa: 1º de abril, 40º aniversário do golpe de 1964 e dia em que fazer os outros de trouxa é incentivado pelo calendário. Caetano Veloso poderia pregar que o poder e a beleza da música são superiores à política cretina da Casa Branca; que sua mania de ser dissonante já derrubara patrulhas ideológicas no passado; que acha Donald Rumsfeld tão lindo quanto Bin Laden. Mas não. Coerente com a folhinha, lembrou que, em uma época de anti-americanização por todo o globo, ele estava remando contra a corrente mais uma vez - embora há mais de 30 anos a História não registre movimentos seus em direção oposta ao establishment.
Um conhecido jornalista da facção anfetamínico-eletrônica deu-se ao trabalho de calcular a centimetragem que os quatro principais jornais do País costumam destinar à Semana Caetano Veloso. Multiplicando o resultado pela tiragem desses mesmos jornais, chegou a um número fabuloso: com a quantidade de papel gasta para falar que o senhor Lavigne é o ser humano mais maravilhoso do mundo (depois de Morrissey, claro), daria para imprimir cerca de 120 mil cartilhas escolares para a população carente de Barra do Guabiraba, no agreste pernambucano. Essa coluna vem acrescentar mais exemplares à conta perversa.
Por Emerson Gasperin
Assim como existe a Fashion Week, o Ano Internacional do Idoso, o Mês da Desgraça e o Dia da Mentira, há a Semana Caetano Veloso. É o período que cerca o lançamento de um novo disco do artista, quando todas as mídias unem-se para ouvir o que o semi-deus de Santo Amaro da Purificação tem a dizer ao Brasil, ao mundo e, conforme a disposição da divindade, até ao planeta Sedna. Em intervalos irregulares - a última edição ocorrera em 2002 -, a realização do evento mobiliza veículos das mais variadas tendências políticas, religiosas e sexuais. O Caso Waldomiro, a dieta de Beverly Hills, o meio-campo do Flamengo, o vencedor do Big Brother, a descoberta da cura para a gota; nada escapa da opinião panorâmica do autodenominado “Velosão” (sic).
Engrossando o coro dos bafejados pela sapiência tropicalista, é seu recente trabalho - A Foreign Sound, composto por regravações de standards norte-americanos - que vai preencher as linhas de hoje. Em 23 faixas, Caetano Veloso visita clássicos de Irving Berlin, George Gershwin, Cole Porter, Duke Ellington, Stevie Wonder, Paul Anka, Bob Dylan e Elvis Presley, entre outros. Trata-se do tipo de empreitada que nem é necessário escutar para perceber que deve ser genial. Afinal, reúne clássicos que venceram as restrições do tempo cantadas pela voz que desafiou todas as convenções poéticas ao rimar “eta, eta, eta” com “Tieta”. Os arranjos? Ah, ninguém liga para isso. Mas, se ligasse, também constataria que são impecáveis, alternando-se entre a reverência pura e simples ao original e a rebeldia iconoclasta do mais famoso intérprete de Peninha.
Feita a descrição do produto, saltam ao estômago duas releituras. Uma, “Feelings”, é abordada de forma séria, hierática, como merece o hit supremo do ianque carioca Morris Albert. A outra, “Come As You Are”, desnuda a relação esquizofrênica que Caetano Veloso mantém com a banda de Kurt Cobain. Às vezes, o Nirvana “é um lixo, se comparado a Ivan Lins”. Às vezes, é o último sopro de renovação experimentado pelo rock. A julgar pela versão contida em A Foreign Sound, Caetano estava naqueles dias em que acreditava piamente na primeira opção. Fica a sugestão para que, caso seja tramado um Volume 2, ele não deixe de incluir “Longview”, do Green Day, e “Hey Ya”, do Outkast, que também renderiam discussões proctológicas acerca da integridade artística do projeto.
A especulação começou já na data marcada para apresentar a obra-prima à imprensa: 1º de abril, 40º aniversário do golpe de 1964 e dia em que fazer os outros de trouxa é incentivado pelo calendário. Caetano Veloso poderia pregar que o poder e a beleza da música são superiores à política cretina da Casa Branca; que sua mania de ser dissonante já derrubara patrulhas ideológicas no passado; que acha Donald Rumsfeld tão lindo quanto Bin Laden. Mas não. Coerente com a folhinha, lembrou que, em uma época de anti-americanização por todo o globo, ele estava remando contra a corrente mais uma vez - embora há mais de 30 anos a História não registre movimentos seus em direção oposta ao establishment.
Um conhecido jornalista da facção anfetamínico-eletrônica deu-se ao trabalho de calcular a centimetragem que os quatro principais jornais do País costumam destinar à Semana Caetano Veloso. Multiplicando o resultado pela tiragem desses mesmos jornais, chegou a um número fabuloso: com a quantidade de papel gasta para falar que o senhor Lavigne é o ser humano mais maravilhoso do mundo (depois de Morrissey, claro), daria para imprimir cerca de 120 mil cartilhas escolares para a população carente de Barra do Guabiraba, no agreste pernambucano. Essa coluna vem acrescentar mais exemplares à conta perversa.
11.2.04
O dia em que Tiazinha pintou na Bizz
Émerson Gasperin
Sem máscara e com uma saia de oncinha, Tiazinha pintou na Bizz para promover sua carreira de estrela do roque - aliás, o disco dela tem uma versão sensacional de "Rock and Roll All Nite", do Kiss ("Eu quero rock and roll all nite, quero dançar com você", diz o refrão). O louco era que nenhum dos caras da banda dela a chamava de Tiazinha, e sim de Suzana. "Quero abandonar essa personagem, sei dançar e cantar", justificava a artista. Logo a notícia de que Tiazinha estava entre nós espalhou-se pelo prédio da editora. Os boys se acotovelavam na porta da redação para ver, farejar, tocar a estrela. Do nada, surgiu uma máquina polaróide da redação vizinha. Uêba, fotos! Resolvi organizar a bagaça. Mandei os manos ficarem em fila e, um a um, eles entravam na redação, pegavam seu autógrafo, tiravam um retrato com Tiazinha e iam embora. O processo funcionou até que um deles chegou com a Playboy com ela na capa. Normal, não era o primeiro a exigir o jamegão da popstar sobre as curvas estampadas na revista. O constrangedor foi que, na maior desfaçatez, o gurizão abriu na página em que aparece a xiranha da cidadã em superclose e lascou: "Aí ó, Su, assinaqui", apontando para os grandes lábios da modelo. A bagunça que reinava no ambiente parou. "Su" olhou em volta sem saber se achava graça, se ficava ofendida ou se prosseguia sua tarde de autógrafos como se não houvesse acontecido nada. Cinco segundos de silêncio total pareceram uma eternidade. Para (tentar) aliviar a tensão, falei para a manada: "Que cabreirice é essa? Tudé arte, né, Suzana?". Aliviada, Tiazinha assentiu com um sorriso, assinou a foto (não no lugar que o boy queria, e sim em cima da virilha) e a programação transcorreu sem sobressaltos. Mas não apareceu mais ninguém com revista na mão para ela assinar.
(por Émerson Gasperin)
Émerson Gasperin
Sem máscara e com uma saia de oncinha, Tiazinha pintou na Bizz para promover sua carreira de estrela do roque - aliás, o disco dela tem uma versão sensacional de "Rock and Roll All Nite", do Kiss ("Eu quero rock and roll all nite, quero dançar com você", diz o refrão). O louco era que nenhum dos caras da banda dela a chamava de Tiazinha, e sim de Suzana. "Quero abandonar essa personagem, sei dançar e cantar", justificava a artista. Logo a notícia de que Tiazinha estava entre nós espalhou-se pelo prédio da editora. Os boys se acotovelavam na porta da redação para ver, farejar, tocar a estrela. Do nada, surgiu uma máquina polaróide da redação vizinha. Uêba, fotos! Resolvi organizar a bagaça. Mandei os manos ficarem em fila e, um a um, eles entravam na redação, pegavam seu autógrafo, tiravam um retrato com Tiazinha e iam embora. O processo funcionou até que um deles chegou com a Playboy com ela na capa. Normal, não era o primeiro a exigir o jamegão da popstar sobre as curvas estampadas na revista. O constrangedor foi que, na maior desfaçatez, o gurizão abriu na página em que aparece a xiranha da cidadã em superclose e lascou: "Aí ó, Su, assinaqui", apontando para os grandes lábios da modelo. A bagunça que reinava no ambiente parou. "Su" olhou em volta sem saber se achava graça, se ficava ofendida ou se prosseguia sua tarde de autógrafos como se não houvesse acontecido nada. Cinco segundos de silêncio total pareceram uma eternidade. Para (tentar) aliviar a tensão, falei para a manada: "Que cabreirice é essa? Tudé arte, né, Suzana?". Aliviada, Tiazinha assentiu com um sorriso, assinou a foto (não no lugar que o boy queria, e sim em cima da virilha) e a programação transcorreu sem sobressaltos. Mas não apareceu mais ninguém com revista na mão para ela assinar.
(por Émerson Gasperin)
9.1.04
O reveillón de Marques Casara
Saí de Floripa no meio da tarde e fui dormir em Morretes, a 50 quilômetros de Curitiba, algo do tipo "entre o mar e a montanha", três mil habitantes.
passei a virada de ano no alto da torre da igreja, em companhia de um simpático corcunda com problemas neurológicos, responsável por badalar o sino no momento exato da virada para 2004.
Homem de poucas palavras.
Entre 11 horas e meia noite tentei estabelecer um diálogo racional com ele, o que não consegui. Quando faltava dez para a meia noite o homem começou a ficar agitado. Andava de um lado para o outro, nervoso.
Eu e minha mulher éramos os únicos turistas no lugar. O homem agitava os braços e apontava para o alto da Igreja. "Vai pular", pensei.
A quatro minutos do novo ano o corcunda já estava fora de si. Balbuciava palavras esquisitas e apontava para o alto da Igreja.
Até que abriu uma porta lateral. Revelou-se uma escada de madeira velha e instável.
o Homem suava e agitava os braços em frente a escada.
___ "Está nos chamando" - comentei.
___ "Vai lá. Tô bem, aqui mesmo" - disse minha mulher.
___ "Vamos! Tá nos chamando para subir na torre".
E eis que a dois minutos do momento final subíamos a escada, aos tropeções. O corcunda gesticulava e pronunciava palavras só dele. A escada rangia. Nos degraus, imagens de santos, potes e velas cobertas de sujeira. Das paredes sem pintura vertia uma água enferrujada.
Ao chegarmos no alto da torre vimos a cidade iluminada pelas lâmpadas de natal.
Duas cordas pendiam da cúpula escura que guardava os sinos, alguns metros acima.
O corcunda enrolou uma corda em cada braço, olhou para o fosso da torre e projetou-se no vazio.
Os sinos responderam imediatamente. O corcunda sacolejava no buraco da torre. Os sinos gritavam o nascer de 2004.
o homem tinha uma impressionante habilidade para dar a cada sino uma cadência particular.
Quando tudo ficou em silêncio o homem desenrolou as cordas dos braços e limpou o suor da testa. Não disse nada. Desceu a escada, trancou a porta e caminhou em direção a uma rua escura. Vai pra casa, pensei.
Sentei na escadaria da igreja e fiquei com a imagem do corcunda. Quando ele parou de tocar os sinos, livrou-se das cordas e olhou nos meus olhos de um jeito que nunca vou esquecer. Percebi que aquele homem entendia o significado da vida. Queria ser como ele.
(Por Marques Casara)
Saí de Floripa no meio da tarde e fui dormir em Morretes, a 50 quilômetros de Curitiba, algo do tipo "entre o mar e a montanha", três mil habitantes.
passei a virada de ano no alto da torre da igreja, em companhia de um simpático corcunda com problemas neurológicos, responsável por badalar o sino no momento exato da virada para 2004.
Homem de poucas palavras.
Entre 11 horas e meia noite tentei estabelecer um diálogo racional com ele, o que não consegui. Quando faltava dez para a meia noite o homem começou a ficar agitado. Andava de um lado para o outro, nervoso.
Eu e minha mulher éramos os únicos turistas no lugar. O homem agitava os braços e apontava para o alto da Igreja. "Vai pular", pensei.
A quatro minutos do novo ano o corcunda já estava fora de si. Balbuciava palavras esquisitas e apontava para o alto da Igreja.
Até que abriu uma porta lateral. Revelou-se uma escada de madeira velha e instável.
o Homem suava e agitava os braços em frente a escada.
___ "Está nos chamando" - comentei.
___ "Vai lá. Tô bem, aqui mesmo" - disse minha mulher.
___ "Vamos! Tá nos chamando para subir na torre".
E eis que a dois minutos do momento final subíamos a escada, aos tropeções. O corcunda gesticulava e pronunciava palavras só dele. A escada rangia. Nos degraus, imagens de santos, potes e velas cobertas de sujeira. Das paredes sem pintura vertia uma água enferrujada.
Ao chegarmos no alto da torre vimos a cidade iluminada pelas lâmpadas de natal.
Duas cordas pendiam da cúpula escura que guardava os sinos, alguns metros acima.
O corcunda enrolou uma corda em cada braço, olhou para o fosso da torre e projetou-se no vazio.
Os sinos responderam imediatamente. O corcunda sacolejava no buraco da torre. Os sinos gritavam o nascer de 2004.
o homem tinha uma impressionante habilidade para dar a cada sino uma cadência particular.
Quando tudo ficou em silêncio o homem desenrolou as cordas dos braços e limpou o suor da testa. Não disse nada. Desceu a escada, trancou a porta e caminhou em direção a uma rua escura. Vai pra casa, pensei.
Sentei na escadaria da igreja e fiquei com a imagem do corcunda. Quando ele parou de tocar os sinos, livrou-se das cordas e olhou nos meus olhos de um jeito que nunca vou esquecer. Percebi que aquele homem entendia o significado da vida. Queria ser como ele.
(Por Marques Casara)
11.12.03
Manhã de sol I
Por Nilva Bianco
A rua reflete luz
amarela, quente e cheirosa.
A luz escorre pelas ?rvores,
pelas casas, desce a ladeira
e vai se derramar l? no mar.
Os braços compridos da luz
sem cerimônia
entram no meu quarto
varrem os restos
de escurid?o e fossa.
Tocam meus cabelos,
lambem meus olhos,
penetram meus sonhos.
Desperto.
Por Nilva Bianco
A rua reflete luz
amarela, quente e cheirosa.
A luz escorre pelas ?rvores,
pelas casas, desce a ladeira
e vai se derramar l? no mar.
Os braços compridos da luz
sem cerimônia
entram no meu quarto
varrem os restos
de escurid?o e fossa.
Tocam meus cabelos,
lambem meus olhos,
penetram meus sonhos.
Desperto.
19.11.03
O crepúsculo nem tão festivo da esquerda
Por Émerson Gasperin
Parecia uma boa idéia. Realizar a palestra com o histórico intelectual de esquerda em um bar, habitat natural das conspirações festivas que ele integrara. A euforia causada pelo álcool imprimiria um tom descontraído à conversa e, com sorte, estimularia o convidado ilustre a revelar inconfidências que não poupariam nem seus antigos sócios no monopólio da resistência. Jornalistas de ontem, hoje e amanhã lotariam as dependências para ouvir daquele senhor um relato impressionante sobre o período verde-oliva do Brasil, enquanto bebericavam algo e conferiam as silhuetas das jovens que flanavam pelo local. No mínimo, seria mais divertido do que ler os livros de Elio Gaspari. Correu tudo conforme o combinado. Ou seja, deu tudo errado.
Ultrapassando as expectativas etílicas a seu respeito, o histórico intelectual já chegou de porre. Havia passado a tarde inteira e o começo da noite em um boteco regando o verbo e alimentando sua lenda pessoal. Às 11, hora marcada para o compromisso, sua dicção estava mais embaralhada do que seu raciocínio. Até aí, nada que empanasse o folclore. A disputa pela atenção enfrentaria obstáculos mais graves: a abundância de espécimes felinas mais interessantes que o palestrante e o retorno ao Brasil de um colega que ficou 14 meses viajando pela parte do planeta que a administração Bush pretende transformar em uma gigantesca quadra de basquete. De repente, escutar as últimas de Cabul com um olho na estagiária ao lado seria mais útil à profissão do que descobrir métodos para driblar a Censura.
Contra o lendário subversivo, o colega tinha a seu favor todo o mistério do Islã e a cumplicidade de seus velhos conhecidos. Para arrematar, não se entendia nem escutava nada do que o tiozinho tentava falar, salvo o movimento de perdigotos em direção ao microfone. Não demorou muito para se perceber de onde viriam as revelações surpreendentes. O colega contava seu relacionamento com o Taleban ("é um movimento gay" ), a difícil sobrevivência em um ambiente de guerrilha ("pelo menos, o cigarro é barato" ) e o rigor das muçulmanas ("não interagi com nenhuma" ). À guisa de lembrança, sacou uma burca, medalhas alusivas à ocupação soviética, uma bandeira vermelha com o perfil de Lênin e um item que imediatamente se tornou objeto de culto e adoração: uma nota de 250 dinares com a efígie de Saddam Hussein, contrabandeada por soldados americanos.
Era novidade demais diante dos lugares comuns que o convidado tinha para expor. Inconscientemente ou não, ele reconheceu a batalha pelos holofotes como perdida e levantou-se, acometido por um ímpeto urinário. Acompanhado por um chargista (seu fã), dirigiu-se ao único banheiro do local. Ocupado. O chargista bateu na porta alertando para a emergência da situação, sem resposta. Então o intelectual declarou com a língua enrolada: "Não vai mais ter palestra nenhuma" . E baixou o olhar. A mancha escura em sua calça cáqui reproduzia o mapa do Chile, um filete que ia da virilha até a canela. O chargista ainda alegou que, se derrubasse cerveja em sua roupa, ninguém ia notar nada. Mas o clima - ou a atmosfera - já estava irremediavelmente comprometido. O sonho acabara.
Quase ninguém acusou a retirada do intelectual. Humilhado, o veterano de grandes causas perdidas, exemplo de valentia na sala de tortura e ícone da luta pela liberdade, voltou para o hotel sozinho, tendo de convencer um taxista a levá-lo naquele estado. Na saída, ainda foi interpelado por outro admirador: "Oi, sempre me inspirei em seu trabalho e..." "Pô, vocês aqui são f..." , interrompeu o prócer da imprensa combativa, antes de evaporar. Lá dentro, na mesa do fundo, o colega continuava com o ibope alto devido à milonga afegã, sem se importar com o destino de sua cédula de dinar. No banheiro, alheios ao drama nefrológico do intelectual, dois amigos do viajante faziam o que nem todo o poderio militar do Pentágono conseguiu: deixar o ditador iraquiano de cabelos brancos.
(por Emerson Gasperin)
Por Émerson Gasperin
Parecia uma boa idéia. Realizar a palestra com o histórico intelectual de esquerda em um bar, habitat natural das conspirações festivas que ele integrara. A euforia causada pelo álcool imprimiria um tom descontraído à conversa e, com sorte, estimularia o convidado ilustre a revelar inconfidências que não poupariam nem seus antigos sócios no monopólio da resistência. Jornalistas de ontem, hoje e amanhã lotariam as dependências para ouvir daquele senhor um relato impressionante sobre o período verde-oliva do Brasil, enquanto bebericavam algo e conferiam as silhuetas das jovens que flanavam pelo local. No mínimo, seria mais divertido do que ler os livros de Elio Gaspari. Correu tudo conforme o combinado. Ou seja, deu tudo errado.
Ultrapassando as expectativas etílicas a seu respeito, o histórico intelectual já chegou de porre. Havia passado a tarde inteira e o começo da noite em um boteco regando o verbo e alimentando sua lenda pessoal. Às 11, hora marcada para o compromisso, sua dicção estava mais embaralhada do que seu raciocínio. Até aí, nada que empanasse o folclore. A disputa pela atenção enfrentaria obstáculos mais graves: a abundância de espécimes felinas mais interessantes que o palestrante e o retorno ao Brasil de um colega que ficou 14 meses viajando pela parte do planeta que a administração Bush pretende transformar em uma gigantesca quadra de basquete. De repente, escutar as últimas de Cabul com um olho na estagiária ao lado seria mais útil à profissão do que descobrir métodos para driblar a Censura.
Contra o lendário subversivo, o colega tinha a seu favor todo o mistério do Islã e a cumplicidade de seus velhos conhecidos. Para arrematar, não se entendia nem escutava nada do que o tiozinho tentava falar, salvo o movimento de perdigotos em direção ao microfone. Não demorou muito para se perceber de onde viriam as revelações surpreendentes. O colega contava seu relacionamento com o Taleban ("é um movimento gay" ), a difícil sobrevivência em um ambiente de guerrilha ("pelo menos, o cigarro é barato" ) e o rigor das muçulmanas ("não interagi com nenhuma" ). À guisa de lembrança, sacou uma burca, medalhas alusivas à ocupação soviética, uma bandeira vermelha com o perfil de Lênin e um item que imediatamente se tornou objeto de culto e adoração: uma nota de 250 dinares com a efígie de Saddam Hussein, contrabandeada por soldados americanos.
Era novidade demais diante dos lugares comuns que o convidado tinha para expor. Inconscientemente ou não, ele reconheceu a batalha pelos holofotes como perdida e levantou-se, acometido por um ímpeto urinário. Acompanhado por um chargista (seu fã), dirigiu-se ao único banheiro do local. Ocupado. O chargista bateu na porta alertando para a emergência da situação, sem resposta. Então o intelectual declarou com a língua enrolada: "Não vai mais ter palestra nenhuma" . E baixou o olhar. A mancha escura em sua calça cáqui reproduzia o mapa do Chile, um filete que ia da virilha até a canela. O chargista ainda alegou que, se derrubasse cerveja em sua roupa, ninguém ia notar nada. Mas o clima - ou a atmosfera - já estava irremediavelmente comprometido. O sonho acabara.
Quase ninguém acusou a retirada do intelectual. Humilhado, o veterano de grandes causas perdidas, exemplo de valentia na sala de tortura e ícone da luta pela liberdade, voltou para o hotel sozinho, tendo de convencer um taxista a levá-lo naquele estado. Na saída, ainda foi interpelado por outro admirador: "Oi, sempre me inspirei em seu trabalho e..." "Pô, vocês aqui são f..." , interrompeu o prócer da imprensa combativa, antes de evaporar. Lá dentro, na mesa do fundo, o colega continuava com o ibope alto devido à milonga afegã, sem se importar com o destino de sua cédula de dinar. No banheiro, alheios ao drama nefrológico do intelectual, dois amigos do viajante faziam o que nem todo o poderio militar do Pentágono conseguiu: deixar o ditador iraquiano de cabelos brancos.
(por Emerson Gasperin)
3.10.03
31.3.03
Coca-cola e sangue (2)
Emerson Gasperin
Também tenho uma lembrança de Coca-cola e sangue.
Houve um tempo em que a maior embalagem de Coca-cola era a de 1 litro. Vinha numa garrafa de vidro grosso, com tampinha que precisava de um abridor para ser removida. Foi subindo as escadas do prédio em que morava com uma dessas na mão que escorreguei e caí. A cicatriz do corte, que quase amputou meu dedo médio, persiste até hoje. Acidentes à parte, o fato é que o litrão era suficiente para a família inteira. Feita a refeição, todo mundo tomava o seu copinho e arrotava satisfeito. Conforme a promoção, ainda se guardava a tampinha ("caquinho") para completar o Bingola Disney. Mas mudaram o nosso hábito - e tentar entender quando, por quê e como isso aconteceu é o enigma que desafia as Novas Gerações.
Se a memória não falha, surgiu a embalagem de 1,25 litro, ainda de vidro. Depois veio o mundo maravilhoso das pets: 600 mls, 2 litros e o litrão unitário. O vidro sumiu (que maravilha é achar bares que insistem em vender garrafinhas de 282 mls), os filhos não cortaram mais os dedos. O abridor, coitado, caiu no ostracismo, bem como simpatias para que o gás do resto que ia parar na geladeira não escapasse (lá em casa, a mania era colocar uma colherzinha no gargalo). Bastaria desatarraxar a tampinha para liberar o acesso àquele rio preto e melado. Com o desejo saciado, o freguês enroscaria a tampinha novamente e garantiria futuros copos gaseificados para escoar a digestão.
Pois o futuro chegou e o mais intrigante nem é que a tal novidade tecnológica continua deixando o gás escapar. A questão é: por que antes o litrão dava para pai, mãe e três fihos, e hoje dois litros são poucos para uma refeição de um simples casal? É um plano da Coca para dominar a Terra. Como qualquer candidato a revolucionário deve saber, a água é o petróleo do século 21. Estudos afirmam que o planeta tem reservas suficientes para durar até 2023. E, pouco a pouco, a multinacional dos refrigerantes estaria adquirindo os mananciais existentes.
A idéia é que,quando a água faltar, o líquido que a gente vai querer beber para matar a sede será Coca-cola. O terrorismo midiático acerca do iminente esgotamento das reservas potáveis é patrocinado pela própria Coca-cola, ávida para colocar sua estratégia em prática. Em resumo, ficaremos todos dependentes da bebida, se não pelo seu sabor, por ser a única opção no mercado e por, inconscientemente, estarem nos obrigando a tomar quantidades crescentes para atingir a satisfação. Pode ver, já tem até uma embalagem de 2,5 litros.
O cenário é assustador. Pessoas necessitando de Coca-cola em doses cavalares, e a companhia lançando embalagens maiores. Chegará um ponto em que a imagem de senhoras pelas ruas arrastando garrafões pretos de 20 litros (também pet) vai se transformar em corriqueira. Uma geração marcada por problemas estomacais e, pelo esforço em transportar os "contêineres" de Coca para suas casas, por lesões irreversíveis na coluna.
O problema do gás que escapa, esse continua insolúvel - mas toda vez que olho para a cicatriz que enfeia minha mão, lembro quanto o colonialismo pode ser perigoso...
(por Emerson Gasperin)
Emerson Gasperin
Também tenho uma lembrança de Coca-cola e sangue.
Houve um tempo em que a maior embalagem de Coca-cola era a de 1 litro. Vinha numa garrafa de vidro grosso, com tampinha que precisava de um abridor para ser removida. Foi subindo as escadas do prédio em que morava com uma dessas na mão que escorreguei e caí. A cicatriz do corte, que quase amputou meu dedo médio, persiste até hoje. Acidentes à parte, o fato é que o litrão era suficiente para a família inteira. Feita a refeição, todo mundo tomava o seu copinho e arrotava satisfeito. Conforme a promoção, ainda se guardava a tampinha ("caquinho") para completar o Bingola Disney. Mas mudaram o nosso hábito - e tentar entender quando, por quê e como isso aconteceu é o enigma que desafia as Novas Gerações.
Se a memória não falha, surgiu a embalagem de 1,25 litro, ainda de vidro. Depois veio o mundo maravilhoso das pets: 600 mls, 2 litros e o litrão unitário. O vidro sumiu (que maravilha é achar bares que insistem em vender garrafinhas de 282 mls), os filhos não cortaram mais os dedos. O abridor, coitado, caiu no ostracismo, bem como simpatias para que o gás do resto que ia parar na geladeira não escapasse (lá em casa, a mania era colocar uma colherzinha no gargalo). Bastaria desatarraxar a tampinha para liberar o acesso àquele rio preto e melado. Com o desejo saciado, o freguês enroscaria a tampinha novamente e garantiria futuros copos gaseificados para escoar a digestão.
Pois o futuro chegou e o mais intrigante nem é que a tal novidade tecnológica continua deixando o gás escapar. A questão é: por que antes o litrão dava para pai, mãe e três fihos, e hoje dois litros são poucos para uma refeição de um simples casal? É um plano da Coca para dominar a Terra. Como qualquer candidato a revolucionário deve saber, a água é o petróleo do século 21. Estudos afirmam que o planeta tem reservas suficientes para durar até 2023. E, pouco a pouco, a multinacional dos refrigerantes estaria adquirindo os mananciais existentes.
A idéia é que,quando a água faltar, o líquido que a gente vai querer beber para matar a sede será Coca-cola. O terrorismo midiático acerca do iminente esgotamento das reservas potáveis é patrocinado pela própria Coca-cola, ávida para colocar sua estratégia em prática. Em resumo, ficaremos todos dependentes da bebida, se não pelo seu sabor, por ser a única opção no mercado e por, inconscientemente, estarem nos obrigando a tomar quantidades crescentes para atingir a satisfação. Pode ver, já tem até uma embalagem de 2,5 litros.
O cenário é assustador. Pessoas necessitando de Coca-cola em doses cavalares, e a companhia lançando embalagens maiores. Chegará um ponto em que a imagem de senhoras pelas ruas arrastando garrafões pretos de 20 litros (também pet) vai se transformar em corriqueira. Uma geração marcada por problemas estomacais e, pelo esforço em transportar os "contêineres" de Coca para suas casas, por lesões irreversíveis na coluna.
O problema do gás que escapa, esse continua insolúvel - mas toda vez que olho para a cicatriz que enfeia minha mão, lembro quanto o colonialismo pode ser perigoso...
(por Emerson Gasperin)
28.3.03
Coca-cola e sangue
Josemar Sehnen, sobre o boicote à coca-cola:
Eu tiro de letra esse lance de eliminar a coca-cola do cardápio. Pra mim, Coca-cola e sangue, sempre estiveram relacionados. A vida não era fácil quando pequeno lá em São Carlos. Pra ter presunto no café da manhã levou um tempo. Iogurte e outras guloseimas só eventualmente e o delicioso liquido preto só em dias especiais. E aquele domingo era um deles: visita de parente, primos, brincadeiras e churrasco. Já na mesa, todos apostos, papai, do alto do seu poder de decisão disse:
- nego, vai lá no Simon e compra refrigerante.
Já saia correndo com a cabeça borbulhando feito uma garrafa de coca-cola recém aberta, quando ouço atraz de mim:
- dois litros...
Nossa, aquilo...como direi... foi música para meus ouvidos. No caminho, esfuziante e saltitante quase rolei as escadas como que num prenúncio.
Domingo, meio dia, venda fechada. Nada, no entanto, me impediria de levar pra casa aqueles DOIS litros de coca-cola. Nem mesmo o mal humor característico do seu Simon, o dono da venda. Articulado, gritei o nome da filha dele, que tinha a minha idade e com quem brincava nas intermináveis tardes de domingo. Quem apareceu, porém, foi corpulento pai da garota mastigando o almoço.
- Dois litros de coca, disse convicto, sem esperar manifestação do, naquele momento, assustador "seu Simon". Diante da minha convicção, não teve alternativa senão trazer os dois litros geladinhos. água na boca. Abracei as garrafas e disparei. E correndo tudo subi as escadas, um, dois, três, quatro degraus. Do quinto não passei.
Coca-cola e sangue.
(By Josema)
Josemar Sehnen, sobre o boicote à coca-cola:
Eu tiro de letra esse lance de eliminar a coca-cola do cardápio. Pra mim, Coca-cola e sangue, sempre estiveram relacionados. A vida não era fácil quando pequeno lá em São Carlos. Pra ter presunto no café da manhã levou um tempo. Iogurte e outras guloseimas só eventualmente e o delicioso liquido preto só em dias especiais. E aquele domingo era um deles: visita de parente, primos, brincadeiras e churrasco. Já na mesa, todos apostos, papai, do alto do seu poder de decisão disse:
- nego, vai lá no Simon e compra refrigerante.
Já saia correndo com a cabeça borbulhando feito uma garrafa de coca-cola recém aberta, quando ouço atraz de mim:
- dois litros...
Nossa, aquilo...como direi... foi música para meus ouvidos. No caminho, esfuziante e saltitante quase rolei as escadas como que num prenúncio.
Domingo, meio dia, venda fechada. Nada, no entanto, me impediria de levar pra casa aqueles DOIS litros de coca-cola. Nem mesmo o mal humor característico do seu Simon, o dono da venda. Articulado, gritei o nome da filha dele, que tinha a minha idade e com quem brincava nas intermináveis tardes de domingo. Quem apareceu, porém, foi corpulento pai da garota mastigando o almoço.
- Dois litros de coca, disse convicto, sem esperar manifestação do, naquele momento, assustador "seu Simon". Diante da minha convicção, não teve alternativa senão trazer os dois litros geladinhos. água na boca. Abracei as garrafas e disparei. E correndo tudo subi as escadas, um, dois, três, quatro degraus. Do quinto não passei.
Coca-cola e sangue.
(By Josema)
20.3.03
"Talvez amanhã aconteça de pararmos na rua para amarrar os cadarços
Ou quem sabe chova e o guarda-chuva esteja em casa
Agora mesmo Amanda me pediu pra ver Alice no país das Maravilhas
Eu resisti: queria ver as notícias de uma guerra que já me contam há meses
Da qual já se sabe o número de possíveis mortos e vivos
E de mortos-vivos
Mundo das Sete Maravilhas
Amanda está vendo Alice, em seguida deve dormir
Amanhã talvez a guerra já estará em seu primeiro dia
Amanda vai pra escola cedo
Espero não esquecer o guarda-chuvas, nem cair por conta dos sapatos"
Adri
(por Adriane Canan)
Ou quem sabe chova e o guarda-chuva esteja em casa
Agora mesmo Amanda me pediu pra ver Alice no país das Maravilhas
Eu resisti: queria ver as notícias de uma guerra que já me contam há meses
Da qual já se sabe o número de possíveis mortos e vivos
E de mortos-vivos
Mundo das Sete Maravilhas
Amanda está vendo Alice, em seguida deve dormir
Amanhã talvez a guerra já estará em seu primeiro dia
Amanda vai pra escola cedo
Espero não esquecer o guarda-chuvas, nem cair por conta dos sapatos"
Adri
(por Adriane Canan)
16.2.03
Lua cheia, céu claro, temperatura agradável. A madrugada que entra pela varanda tem um hálito misterioso.
O coração bate em compasso. Provavelmente está vivo.
Que fantasmas rondam as marginais? O que dizem teus olhos? O que dizem?
Marchou contra a guerra. Ao final, bebeu uma Coca-Cola e fumou um Marlboro.
Depois, foi ao cinema ver Nêmesis, a bomba da semana, com aquele chato do Data.
Se o Oscar não vem a nós, Caetano vai até ele.
Ai, que saudades do senhor Checov.
Nada como a vida ao ar livre.
(por Marques Casara)
O coração bate em compasso. Provavelmente está vivo.
Que fantasmas rondam as marginais? O que dizem teus olhos? O que dizem?
Marchou contra a guerra. Ao final, bebeu uma Coca-Cola e fumou um Marlboro.
Depois, foi ao cinema ver Nêmesis, a bomba da semana, com aquele chato do Data.
Se o Oscar não vem a nós, Caetano vai até ele.
Ai, que saudades do senhor Checov.
Nada como a vida ao ar livre.
(por Marques Casara)
15.2.03
12.1.03
21.12.02
A verdadeira profissão mais velha do mundo
Zé Dassilva
Muitas inverdades têm sido contadas sobre a origem da humanidade. Uma delas é aquela conversa de que a profissão mais velha do mundo é a... você sabe... aquela em que... ah, a prostituição! Pronto, falei.
* * *
Mas algum escavador já descobriu um esqueleto de mulher com 15 mil anos, rodando uma bolsinha de pterodátilo? E alguém achou uma nota de dinheiro – ou um punhado de sal, vá lá – junto da ossada de alguma prostituta das cavernas? Se não tem indícios científicos, então é tudo difamação! Na aurora da humanidade, a mulher levava uma cacetada na cabeça e era arrastada pelo pretendente. E pra quê isso? Pra, milhares de anos depois, ser chamada de... bem, você sabe. E, se somos todos descendentes daquelas senhoras, então seríamos todos filhos da... Ah, não podemos continuar acreditando nisso!
* * *
Na verdade, desenhista é a profissão mais velha do mundo! E isso ninguém pode negar, pois ficou registrado. Poucas pessoas sabem desenhar hoje, e naquela época não devia ser muito diferente. Era mais ou menos assim: na caverna, à noite, o desenhista reunia a platéia para reconstituir a grande caçada. Ele tinha o privilégio de não caçar: apenas acompanhava a missão a fim de registrar tudo – e com crachá de imprensa, é bem possível.
* * *
Para animar o banquete, o artista desenhava a cena na parede da caverna. As pinturas rupestres garantiam a ele aplausos e a primeira remuneração da história da humanidade. O desenhista saía de lá com um pedaço de mamute assado, que mal dava para carregar. Era preciso achar alguém, nem que fosse um “alguém” momentâneo, para dividir aquela riqueza. Foi aí que nasceu a prostituição.
(por Zé Dassilva)
Zé Dassilva
Muitas inverdades têm sido contadas sobre a origem da humanidade. Uma delas é aquela conversa de que a profissão mais velha do mundo é a... você sabe... aquela em que... ah, a prostituição! Pronto, falei.
* * *
Mas algum escavador já descobriu um esqueleto de mulher com 15 mil anos, rodando uma bolsinha de pterodátilo? E alguém achou uma nota de dinheiro – ou um punhado de sal, vá lá – junto da ossada de alguma prostituta das cavernas? Se não tem indícios científicos, então é tudo difamação! Na aurora da humanidade, a mulher levava uma cacetada na cabeça e era arrastada pelo pretendente. E pra quê isso? Pra, milhares de anos depois, ser chamada de... bem, você sabe. E, se somos todos descendentes daquelas senhoras, então seríamos todos filhos da... Ah, não podemos continuar acreditando nisso!
* * *
Na verdade, desenhista é a profissão mais velha do mundo! E isso ninguém pode negar, pois ficou registrado. Poucas pessoas sabem desenhar hoje, e naquela época não devia ser muito diferente. Era mais ou menos assim: na caverna, à noite, o desenhista reunia a platéia para reconstituir a grande caçada. Ele tinha o privilégio de não caçar: apenas acompanhava a missão a fim de registrar tudo – e com crachá de imprensa, é bem possível.
* * *
Para animar o banquete, o artista desenhava a cena na parede da caverna. As pinturas rupestres garantiam a ele aplausos e a primeira remuneração da história da humanidade. O desenhista saía de lá com um pedaço de mamute assado, que mal dava para carregar. Era preciso achar alguém, nem que fosse um “alguém” momentâneo, para dividir aquela riqueza. Foi aí que nasceu a prostituição.
(por Zé Dassilva)
19.12.02
O jovem, a camiseta e o hippie neoliberal
Emerson Gasperin
(texto publicado em 9 de janeiro de 2001)
Um dos poucos integrantes do elenco fixo dessa coluna é Zé Dassilva. Com seu talento, tramou uma rede de fontes de renda para desfrutar Florianópolis na plenitude. Chargista, roteirista e, para quebrar a lista de "istas", escritor, ele abana um leque de opções na hora de arrancar o dinheiro do freguês. É um bon vivant, ainda que isso tenha lhe custado algumas pregas. E ainda mora com os pais, o paxá. Nasceu no dia 31 de dezembro e, quando ouviu todos aqueles fogos, achou que estavam celebrando sua chegada à Terra. Repetindo piadas surradas como essa e manejando com habilidade os diferentes ambientes que freqüenta, Zé Dassilva consegue gozar de razoável destaque na imprensa catarinense. Um bom sujeito, capaz de ações filantrópicas sem cunho promocional.
Como não pôde reclamar do ano que passou, Zé decidiu comemorar seu aniversário em grande estilo. Juntou-se a dois chapas que também sopravam velinhas por perto, Rubinho e Josemar, e alugou uma escuna para festejar data tão significativa. A saída seria de um trapiche no meio da Beira-Mar. Cerca de 40 convidados, bebida e sons que variavam dos populares Red Hot Chili Peppers a particularidades criciumenses como uma coletânea do Rush. Era quase meia-noite quando os três anfitriões decidiram zarpar.
Velhos amigos, alguns casados com amigas, todo mundo amigo. Todo mundo rindo e fofocando sem falar de lembranças ou tentando evocar um tempo que já foi. Pela primeira vez, as reminiscências não dominavam o papo. No máximo, um "como está a fulana?" seguido de "hi, casou, tem um filhinho, não sabias?" para não negar o passado. Depois de quase dez anos assimilando o golpe que a maturidade representou, era hora de olhar para frente, comentar política, contar como vive, enfim, essas coisas que a gente descamba a fazer a partir do momento que as condições de financiamento da Caixa Econômica Federal tornam-se mais importantes do que a volta do Cult.
Mas não deixava de ser um bom presságio. A idade adulta chegou e nem doeu. Agora somos todos homenzinhos, que declaram Imposto de Renda, pagam prestrações e planejam. Ostentamos um dinheiro que nunca tivemos antes e nos consideramos mais inteligentes e sofisticados. Até as roupas mudaram. Já estava quase me achando um vencedor quando tocou o celular do Zé. Era o Mutley, que havia se atrasado e perdido a barca, dizendo que esperava no trapice. Detalhe 1: o passeio atingia seu ápice, a poucos metros da ponte Hercílio Luz, toda iluminada para os festejos de fim de ano - e para celebrar o nascimento do Zé, tolinho. Detalhe 2: Mutley mora no prédio em frente ao lugar que a escuna estava atracada.
A escuna, célere, aproximava-se da ponte. A lua, depois de um início de noite encoberta pela chuva, insinuava-se pelos lados do sul da Ilha. Sammy Davis Jr. (onde é que o Zé foi arrumar isso?) saía dos alto-falantes. A ponte, cada vez mais perto. A lua, cada vez maior. Sammy Davis, cada vez mais alto. A ponte. A lua. Sammy. A ponte. Uma faixa em homenagem ao Guga. Zé quebrou o transe, mostrando que as 27 primaveras e a dinheirada que administra o transformaram em um homem de decisões de impacto. Ordenou a meia-volta.
O comandante atendeu prontamente. Girou todo o timão para a esquerda, como quem dá um cavalo-de-pau. Uôôôôôôôô.... Sem vômitos, pois, tratam-se de adultos. À uma e meia o Mutley não era somente uma silhueta manchando o visual da Beira Mar. Na verdade, desde meados de 2000 que ele não mora mais ali. Ali moram seus pais, pomba! Ele está em São Paulo, desfilando seu senso de humor e causando sensações estranhas no microcosmo alternativo. Ainda espera com mais ansiedade o novo do Teenage Fanclub do que o décimo-terceiro. Alheios ao desfecho dessa comovente polaróide de amor fraternal, casais responsáveis abandonaram o barco. Deles é que iríamos falar mal na segunda parte da viagem.
Ao colocar o pé direito na murada, deu para ver o que está escrito na camiseta rosa de Mutley: "Lésbica." O maior desgosto para um cara que veste algo assim é não despertar comentário. Nada falei. Não precisou, algum desavisado já caiu no truque. Tentei começar o milênio impregnado de vibrações positivas. Com a cabeça infestada de aromas e o pensamento embargado por gesto tão nobre - abortar o ponto alto da festa só para pegar o amigo goiaba - tive a nítida certeza de que preciso voltar para essa cidade e, aqui, realizar minha grande obra. Seja um livro, uma horta ou uma câmara de defumação. Olha a ponte aí de novo.
(por Emerson Gasperin)
Emerson Gasperin
(texto publicado em 9 de janeiro de 2001)
Um dos poucos integrantes do elenco fixo dessa coluna é Zé Dassilva. Com seu talento, tramou uma rede de fontes de renda para desfrutar Florianópolis na plenitude. Chargista, roteirista e, para quebrar a lista de "istas", escritor, ele abana um leque de opções na hora de arrancar o dinheiro do freguês. É um bon vivant, ainda que isso tenha lhe custado algumas pregas. E ainda mora com os pais, o paxá. Nasceu no dia 31 de dezembro e, quando ouviu todos aqueles fogos, achou que estavam celebrando sua chegada à Terra. Repetindo piadas surradas como essa e manejando com habilidade os diferentes ambientes que freqüenta, Zé Dassilva consegue gozar de razoável destaque na imprensa catarinense. Um bom sujeito, capaz de ações filantrópicas sem cunho promocional.
Como não pôde reclamar do ano que passou, Zé decidiu comemorar seu aniversário em grande estilo. Juntou-se a dois chapas que também sopravam velinhas por perto, Rubinho e Josemar, e alugou uma escuna para festejar data tão significativa. A saída seria de um trapiche no meio da Beira-Mar. Cerca de 40 convidados, bebida e sons que variavam dos populares Red Hot Chili Peppers a particularidades criciumenses como uma coletânea do Rush. Era quase meia-noite quando os três anfitriões decidiram zarpar.
Velhos amigos, alguns casados com amigas, todo mundo amigo. Todo mundo rindo e fofocando sem falar de lembranças ou tentando evocar um tempo que já foi. Pela primeira vez, as reminiscências não dominavam o papo. No máximo, um "como está a fulana?" seguido de "hi, casou, tem um filhinho, não sabias?" para não negar o passado. Depois de quase dez anos assimilando o golpe que a maturidade representou, era hora de olhar para frente, comentar política, contar como vive, enfim, essas coisas que a gente descamba a fazer a partir do momento que as condições de financiamento da Caixa Econômica Federal tornam-se mais importantes do que a volta do Cult.
Mas não deixava de ser um bom presságio. A idade adulta chegou e nem doeu. Agora somos todos homenzinhos, que declaram Imposto de Renda, pagam prestrações e planejam. Ostentamos um dinheiro que nunca tivemos antes e nos consideramos mais inteligentes e sofisticados. Até as roupas mudaram. Já estava quase me achando um vencedor quando tocou o celular do Zé. Era o Mutley, que havia se atrasado e perdido a barca, dizendo que esperava no trapice. Detalhe 1: o passeio atingia seu ápice, a poucos metros da ponte Hercílio Luz, toda iluminada para os festejos de fim de ano - e para celebrar o nascimento do Zé, tolinho. Detalhe 2: Mutley mora no prédio em frente ao lugar que a escuna estava atracada.
A escuna, célere, aproximava-se da ponte. A lua, depois de um início de noite encoberta pela chuva, insinuava-se pelos lados do sul da Ilha. Sammy Davis Jr. (onde é que o Zé foi arrumar isso?) saía dos alto-falantes. A ponte, cada vez mais perto. A lua, cada vez maior. Sammy Davis, cada vez mais alto. A ponte. A lua. Sammy. A ponte. Uma faixa em homenagem ao Guga. Zé quebrou o transe, mostrando que as 27 primaveras e a dinheirada que administra o transformaram em um homem de decisões de impacto. Ordenou a meia-volta.
O comandante atendeu prontamente. Girou todo o timão para a esquerda, como quem dá um cavalo-de-pau. Uôôôôôôôô.... Sem vômitos, pois, tratam-se de adultos. À uma e meia o Mutley não era somente uma silhueta manchando o visual da Beira Mar. Na verdade, desde meados de 2000 que ele não mora mais ali. Ali moram seus pais, pomba! Ele está em São Paulo, desfilando seu senso de humor e causando sensações estranhas no microcosmo alternativo. Ainda espera com mais ansiedade o novo do Teenage Fanclub do que o décimo-terceiro. Alheios ao desfecho dessa comovente polaróide de amor fraternal, casais responsáveis abandonaram o barco. Deles é que iríamos falar mal na segunda parte da viagem.
Ao colocar o pé direito na murada, deu para ver o que está escrito na camiseta rosa de Mutley: "Lésbica." O maior desgosto para um cara que veste algo assim é não despertar comentário. Nada falei. Não precisou, algum desavisado já caiu no truque. Tentei começar o milênio impregnado de vibrações positivas. Com a cabeça infestada de aromas e o pensamento embargado por gesto tão nobre - abortar o ponto alto da festa só para pegar o amigo goiaba - tive a nítida certeza de que preciso voltar para essa cidade e, aqui, realizar minha grande obra. Seja um livro, uma horta ou uma câmara de defumação. Olha a ponte aí de novo.
(por Emerson Gasperin)
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