23.7.02

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18.7.02

A cadeira voadora (micro-reportagem)
Dauro Veras

Ricardo praticava vôo livre no Rio Grande do Sul. Piloto exímio de asa-delta. Um dia, a fatalidade: acidente e tetraplegia. Perdeu os movimentos do pescoço pra baixo. Desenganado pelos médicos brasileiros, foi salvo por sua dupla nacionalidade. Mudou-se pra Lucerna, Suíça, e lá fez um tratamento de primeira. Fisioterapia, carinho, persistência. Pouco a pouco recuperou os movimentos da cintura pra cima. O sonho de voltar a voar continuava aceso. Conheceu o pessoal do Club de Vol Libre du Salève, em Genebra. Maravilhosos "malucos". Organizam vôos solo de parapente pra cegos, com ajuda de rádio. Inventaram uma cadeira de rodas especial, com proteções laterais e amortecedores que permitem a paraplégicos voar em segurança. Ele apostou nessa. Subiu o Mont Salève (1.375 m) e saltou sozinho. Belo vôo, pouso perfeito! Ricardo pratica vôo livre.

15.7.02

Pura sorte
Dauro Veras



1.
Chega a pé. Sol quente, uma e meia da tarde. Casas geminadas sem jardim. Ninguém por ali, só o menino brincando com bolas de gude na calçada.
- Seu pai tá em casa?
- Tá.
Mão no bolso. Nota de cinco.
- Tome. Pra comprar de bala.
O garoto pega o dinheiro, corre para a venda e some de vista.
Sobe o degrau e empurra devagar a porta da frente, entreaberta. Na sala, um homem vê tevê sentado numa cadeira de balanço de plástico trançado. Sorri para o desconhecido, meio sem saber por quê, e se levanta.
- 'Dia. Posso ajudar?
- Licença. O senhor é Joaquim dos Prazeres, do sindicato?
- Eu mesmo.
- Vim lhe trazer uma encomenda.
Dois tiros certeiros. Um no coração, outro na cabeça. Guarda o revólver e sai caminhando sem pressa.

2.
Demorou, mas um dia falhou. Munição velha. O sujeito reagiu, foi preciso usar arma branca. Confusão, gritaria, fuga rápida. Levou rasteira na esquina e foi algemado pelos soldados de polícia. Na prisão, o pão que o diabo. Quebraram-lhe os dedos da mão direita com cabo de fuzil, um a um. Meses depois, grade serrada e rua.

3.
Sol quente, duas da tarde. Dois meninos batem bola no campinho. Faz sinal e eles vêm.
- Conhecem Mané das Dores?
- É meu pai. Tá em casa, aquela verde ali, ó.
Duas cédulas de cinco, eles pegam rápido. O mais novo aponta a atadura na mão do homem:
- Que foi isso?
- Acidente de trabalho. Mas dei sorte. Sou canhoto.
Os meninos saem correndo para a venda. Ele caminha em direção à casa verde e empurra a porta em silêncio.

SAPATO (CONTO)
Giancarlo Proença
Ninguém jamais soube explicar o porquê, mas minha prima Gedi Marizete não suporta enxergar solas de sapato. Basta ver um chinelo virado que ela se desespera, corre, desvira e só então suspira com um jeito de quem salvou o mundo da hecatombe. Minha bisavó Davina, por quem Marizete foi criada, dizia que chinelo virado dava má sorte, que causava a morte de alguém da família, um equivalente aos sete anos de azar ao se quebrar um espelho. Todos na família tentaram tirar essa mania de Marizete, já que deixava a moça aflita quando não havia como desvirar um sapato sem causar vexame.

Como a vez em que um casal de amigos de meu pai chegou da serra para nos visitar na praia. Havaianas nos pés, o casal logo se refestelou nas redes da varanda, na velha casa à beira-mar. Obviamente, os chinelos foram largados de qualquer jeito enquanto eles embalavam na rede. Assistindo a tudo pela janela, Marizete suava bicas, tremia as mãos e contraía os lábios enquanto na sua frente o pé esquerdo de uma Havaiana mostrava sua sola azul calcinha. Minha vontade era de ir lá, desvirar a sandália eu mesmo e acabar com o sofrimento de minha prima. Mas não podia invadir a privacidade das visitas, eles na rede, namorando, e eu indo virar um chinelo. Ridículo. Mas Marizete deu um jeito de passar pela varanda, quase roçar o corpo na rede, dar um chute de leve na sandália e suspirar aquele suspiro de sempre.

Não havia cristão que lhe tirasse essa mania. Nem pai, nem mãe, nem avó, nem ninguém. Fomos todos obrigados a admitir nosso fracasso, a abandonar a cruzada em favor, se não da paz de espírito de Marizete, da nossa própria. Éramos obrigados a nos vigiarmos enquanto ela estivesse em casa, cuidar com a posição em que ficavam os sapatos descalços, a forma como os guardávamos. E mesmo assim, ela passava os armários em revista duas ou três vezes ao dia, para se certificar de que as solas não estavam aparecendo.

Só fomos entender a obsessão de Marizete no dia em que, assistindo tevê, vimos o general-presidente sentado na Granja do Torto, calças largas de montaria e chicote na mão, apoiava o pé descalço em uma alpercata virada com a sola para cima. Nos olhamos e viramos para uma Marizete aflita. Todos, ela e nós, experimentando uma nítida sensação de que, se pudéssemos virar aquele sapato, tudo seria bem diferente em Brasília.

13.7.02

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***

Tão banal é a solução final

Os programas de auditório repetem o ritual até hoje. O apresentador anuncia o artista para lançar seu novo trabalho, "que já é disco de ouro", ou seja, já vendeu 100 mil cópias. Quando se é criança, a questão entra para o rol daquelas perguntas desimportantes que só voltam a ser lembradas anos depois, ao se esbarrar com a resposta: "Como já pode ser disco de ouro, se nem chegou às lojas ainda?". Mais tarde, taludito, descobre-se: o número de cópias que garante o disco de ouro é estabelecido com base nos pedidos dos lojistas. O fato de um disco ser de ouro não significa que 100 mil pessoas compraram tal disco, e sim que as lojas encomendaram 100 mil unidades dele.

Graças ao polêmico projeto que obriga editoras e companhias fonográficas a controlar de algum jeito o número exato de produtos que despejam no mercado, volta-se a discutir o processo - e o mais engraçado é ver a cara de "eu não sabia que era assim" de quem, por ofício, deveria saber como é que as coisas funcionam. Partindo do pressuposto de que são enganados pelos seus patrões, os artistas querem aferir suas propriedades intelectuais. Lobão e Beth Carvalho à frente, entregaram um abaixo-assinado da categoria ao Planalto. A proposta é de que se numere ou se assine lotes de CDs e livros para evitar a evasão de direitos autorais e ter uma percepção real de seu desempenho no mercado.

Do outro lado, está a classe patronal. A Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) foi rápida: desqualificou os termos alegando que seria impossível cumpri-los, ameaçou com aumento de preços e baixou o valor do disco de ouro para 50 mil unidades (!?). Para justificar a discrepância entre o que é divulgado como vendido e o que é efetivamente vendido (com os direitos devidos repassados ao autor), diz que "distorções são passíveis de acontecer nesse método". Por fim, mistura as bolas e desenterra o medo contra o verdadeiro problema do setor, a pirataria. Acuados, artistas vão à público retirar sua assinatura da lista de Lobão dizendo que não imaginavam que a solução apresentada seria tão barulhenta. Desmoralizam-se todos.

Um amigo que tem uma banda de rock está doido para participar desta discussão. Como um desesperado, procura uma gravadora que o contrate. Nem liga com a hipótese de ser roubado. Quer porque quer ter seus discos distribuídos em tudo quanto é lugar, que o jabá impulsione suas canções na rádio, que seja um sucesso tão grande que desperte a desconfiança sobre o que recebe de direitos. Aí sim, ao alcançar a status de "produto lucrativo para ser fraudado", dirá o que pensa desse lance muito doido de disco, número, ABPD, pirataria, fama, assédio, drogas e time de futebol. Não virá com lei ("rock não combina com lei", prega), decreto ou exigências. Seu discurso - ou entrevista coletiva - entrará entrará para a jurisprudência como uma cristalina demonstração de fé no livre-arbítrio.

Provocante, começará afirmando que quem não faz sucesso não precisa se preocupar e tem mais é que torcer para ser pirateado, pois será a única forma de a posteridade tomar conhecimento de suas existências. Relativizará com cinismo expondo que não é correto mexer em relações entre artista e gravadora que estão deixando ambas as partes satisfeitas, com falcatrua ou não. E desafiará seus colegas a tomar a mesma atitude que ele. Doravante, abrirá mão de seus direitos autorais em prol da gravadora, dos piratas e de quem mais se dispuser a fabricar e vender seu disco. "Eles que se matem", desdenhará. "Meu negócio é fazer show, tocar ao vivo. Nunca vivi de direitos autorais", encerrará, atingindo também "todas essas bichinhas metidas a DJ". Com o rock não se brinca.
A TV e a rachadura
Dauro Veras

Nem bem os carros com dizeres “imprensa” estacionaram, os repórteres e cinegrafistas começaram a circular nervosos pela praça do Palhano. A cidadezinha cearense ganhara notoriedade repentina com os tremores de terra. Em vez das cadeiras de balanço na calçada, o povo agora conversava em animadas rodinhas perto das barracas do exército. Uns poucos se recusavam a sair de casa, não ligando a mínima pra escala Richter.

Baterias checadas, luz e batom ok, cabelo ajeitado. Gravando. Depoimentos do geólogo, do militar, do prefeito, da dona de casa. Plano geral da igreja, da pracinha, do acampamento. Detalhes do jumento, do menino buchudo, da panela no fogo improvisado. A repórter pergunta sobre os danos e escuta, meio decepcionada: “Coisa pouca”. Resolvem circular. De repente o cinegrafista brilha os olhos: “Caralho!, olha só o tamanho da rachadura naquela parede!” A equipe se aproxima e encontra o velho de chapéu de palha fumando o palheiro na rede da sala.

- Bom dia, senhor! A casa é sua?
- É sim senhora, fique à vontade.
- A gente pode gravar os estragos? – sem esperar a resposta, o cinegrafista liga a câmera.
- Mas essa rachadura aí é antiga, minha fia...
- Pega a igreja no fundo, Josias!
- Faz vinte e sete anos que a parede cedeu mode a chuva...
- Isso, enquadra a rua! Três, dois, um... gravando. Os moradores da cidade de Palhano, no Vale do Jaguaribe, despertaram hoje com um grande susto. A terra tremeu! E as paredes de suas casas agora ameaçam desmoronar.
- ...
- Seu Severiano se recusa a sair de casa, apesar do risco de desabamento. O que o senhor está achando do abalo sísmico?
- Até que ajuda a embalar a rede, né?
- O senhor não tem medo de morrer soterrado?
- Faz medo, não, Deus é pai. Essa rachadura já tá aí faz vinte e sete anos e nunca...
- Corta, Josias! Na edição a gente ajeita, vambora. – Saem ligeiro.
- Êta povinho avexado...

12.7.02

ALMA
Adriane Canan

Irina tinha a cabeça baixa e a alma quebrada quando entrou na sapataria. Sentiu que estava suando e esfregou as mãos úmidas na blusa com força. Só então olhou para trás do balcão do pequeno estabelecimento, abarrotado de sapatos esquecidos, de jornais velhos pendurados nas prateleiras de madeira e de sacolas com fechos quebrados. Ao encontrar o olhar daquele homem alto e gordo, de bigodes ralos grudados pela mesma cola que sufocava o ambiente, ficou com a impressão de que o sapateiro sabia de tudo. Encheu os olhos d’água, sentiu uma leve tontura, mas deu dois passos, apoiou-se no balcão e disfarçou tirando a sandália vermelha da sacola e abrindo um sorriso meio de lado: talvez não houvesse mais conserto, ela se enfiara num buraco sem saída, sentira-se presa, não dava para explicar:

- Aí, bom, quebrou. É isso!

Viu um filtro na mesinha cheia de ferramentas do sapateiro e pediu-lhe água. Precisava se acalmar um pouco antes de saber a opinião do homem. Perguntou se podia sentar. Ele apontou o banquinho forrado de couro. Sentou-se, ajeitou a bolsa no colo e ficou observando o sapateiro que analisava o calçado.

Irina sabia que seria difícil aceitar que terminasse assim, e não tirava aquilo da cabeça. Era uma ótima esposa, fazia tudo para que os fins de semana fossem maravilhosos e que os programas feitos com o Francis tivessem todos os ingredientes daqueles inesquecíveis. As fotos comprovavam todas as aventuras que viveram juntos: Arembepe, Bombinhas, São Francisco de Paula no invernão! Sem falar, é claro, do álbum do casamento: aquela era uma união apaixonada, cheia de coisas em comum, bastava ver a cara dos amigos.

E o movimento estudantil? As passeatas? O voto convicto no mesmo projeto político? E a reforma da casa? E O Tigre e o Dragão naquele domingo no cinema? O disco do Chico Buarque comprado num sebo em São Paulo? E ainda havia a história dela levar até o trabalho para perto de casa, para perto do Francis.
Os contra eram bem poucos. Ela não gostava de futebol – e aquele enorme pôster do Internacional colado na parede suja da sapataria! -, e era um pouco ingênua para certas coisas. Havia também aqueles sonhos de adolescente, que poderiam levá-la para longe. Mas não era coisa para briga tão feia. Ir para casas separadas, ficar sem se falar, e ainda, que merda!, o buraco e o estrago na sandália vermelha.

Bebeu a água em pequenos goles e sofreu quando o sapateiro puxou o salto com tanta força que descolou tudo.

- Está aqui o problema – disse o homem. Ele tinha uma voz bonita, forte e amiga. Tentaria resolver, mas o conserto era difícil. Estava quebrada na peça de metal entre o salto e a sola, a alma: - Problema assim, dona, pode ser até que não tenha jeito.

Ela sentiu vontade de chorar bem alto. Respirou fundo e disse meia dúzia de palavras que saíram sem pensar:

- Bom, vê o que dá pra fazer. Passo aqui amanhã ou semana que vem ou no próximo mês ou...

Levantou-se, colocou o copo no balcão depressa para não mostrar a tremedeira e pensou na Marina. Achou que seria legal dar um pulinho na casa da amiga. Perguntou se não estaria abusando se usasse rapidinho o telefone da casa, o celular estava sem bateria. O homem foi atencioso, alcançou o telefone até o balcão e explicou que a tinta branca dos números tinha desaparecido porque os dedos molhados de cola ou água castigavam as teclas há tempo. Ela disse que tudo bem e digitou com rapidez os números que tinha na memória. Pediu pra Marina se dava para passar lá e conversar um pouco.

Largou o fone no gancho, olhou com carinho para o sapateiro e agradeceu a gentileza. Queria muito cuidado com a sandália vermelha, passaria ali como combinado para saber do conserto. Encontrou a tarde já caindo na rua e entrou no carro com a cabeça doendo. Ligou o rádio e ouviu As rosas não falam, do Cartola, bem baixinho. Quando chegou no prédio da Marina o sol já tinha se posto, mas os apartamentos estavam com as luzes acesas.
(Adriane Canan)