21.12.02

A verdadeira profissão mais velha do mundo
Zé Dassilva

Muitas inverdades têm sido contadas sobre a origem da humanidade. Uma delas é aquela conversa de que a profissão mais velha do mundo é a... você sabe... aquela em que... ah, a prostituição! Pronto, falei.

* * *

Mas algum escavador já descobriu um esqueleto de mulher com 15 mil anos, rodando uma bolsinha de pterodátilo? E alguém achou uma nota de dinheiro – ou um punhado de sal, vá lá – junto da ossada de alguma prostituta das cavernas? Se não tem indícios científicos, então é tudo difamação! Na aurora da humanidade, a mulher levava uma cacetada na cabeça e era arrastada pelo pretendente. E pra quê isso? Pra, milhares de anos depois, ser chamada de... bem, você sabe. E, se somos todos descendentes daquelas senhoras, então seríamos todos filhos da... Ah, não podemos continuar acreditando nisso!

* * *

Na verdade, desenhista é a profissão mais velha do mundo! E isso ninguém pode negar, pois ficou registrado. Poucas pessoas sabem desenhar hoje, e naquela época não devia ser muito diferente. Era mais ou menos assim: na caverna, à noite, o desenhista reunia a platéia para reconstituir a grande caçada. Ele tinha o privilégio de não caçar: apenas acompanhava a missão a fim de registrar tudo – e com crachá de imprensa, é bem possível.

* * *

Para animar o banquete, o artista desenhava a cena na parede da caverna. As pinturas rupestres garantiam a ele aplausos e a primeira remuneração da história da humanidade. O desenhista saía de lá com um pedaço de mamute assado, que mal dava para carregar. Era preciso achar alguém, nem que fosse um “alguém” momentâneo, para dividir aquela riqueza. Foi aí que nasceu a prostituição.
(por Zé Dassilva)

19.12.02

O jovem, a camiseta e o hippie neoliberal
Emerson Gasperin
(texto publicado em 9 de janeiro de 2001)

Um dos poucos integrantes do elenco fixo dessa coluna é Zé Dassilva. Com seu talento, tramou uma rede de fontes de renda para desfrutar Florianópolis na plenitude. Chargista, roteirista e, para quebrar a lista de "istas", escritor, ele abana um leque de opções na hora de arrancar o dinheiro do freguês. É um bon vivant, ainda que isso tenha lhe custado algumas pregas. E ainda mora com os pais, o paxá. Nasceu no dia 31 de dezembro e, quando ouviu todos aqueles fogos, achou que estavam celebrando sua chegada à Terra. Repetindo piadas surradas como essa e manejando com habilidade os diferentes ambientes que freqüenta, Zé Dassilva consegue gozar de razoável destaque na imprensa catarinense. Um bom sujeito, capaz de ações filantrópicas sem cunho promocional.

Como não pôde reclamar do ano que passou, Zé decidiu comemorar seu aniversário em grande estilo. Juntou-se a dois chapas que também sopravam velinhas por perto, Rubinho e Josemar, e alugou uma escuna para festejar data tão significativa. A saída seria de um trapiche no meio da Beira-Mar. Cerca de 40 convidados, bebida e sons que variavam dos populares Red Hot Chili Peppers a particularidades criciumenses como uma coletânea do Rush. Era quase meia-noite quando os três anfitriões decidiram zarpar.

Velhos amigos, alguns casados com amigas, todo mundo amigo. Todo mundo rindo e fofocando sem falar de lembranças ou tentando evocar um tempo que já foi. Pela primeira vez, as reminiscências não dominavam o papo. No máximo, um "como está a fulana?" seguido de "hi, casou, tem um filhinho, não sabias?" para não negar o passado. Depois de quase dez anos assimilando o golpe que a maturidade representou, era hora de olhar para frente, comentar política, contar como vive, enfim, essas coisas que a gente descamba a fazer a partir do momento que as condições de financiamento da Caixa Econômica Federal tornam-se mais importantes do que a volta do Cult.

Mas não deixava de ser um bom presságio. A idade adulta chegou e nem doeu. Agora somos todos homenzinhos, que declaram Imposto de Renda, pagam prestrações e planejam. Ostentamos um dinheiro que nunca tivemos antes e nos consideramos mais inteligentes e sofisticados. Até as roupas mudaram. Já estava quase me achando um vencedor quando tocou o celular do Zé. Era o Mutley, que havia se atrasado e perdido a barca, dizendo que esperava no trapice. Detalhe 1: o passeio atingia seu ápice, a poucos metros da ponte Hercílio Luz, toda iluminada para os festejos de fim de ano - e para celebrar o nascimento do Zé, tolinho. Detalhe 2: Mutley mora no prédio em frente ao lugar que a escuna estava atracada.

A escuna, célere, aproximava-se da ponte. A lua, depois de um início de noite encoberta pela chuva, insinuava-se pelos lados do sul da Ilha. Sammy Davis Jr. (onde é que o Zé foi arrumar isso?) saía dos alto-falantes. A ponte, cada vez mais perto. A lua, cada vez maior. Sammy Davis, cada vez mais alto. A ponte. A lua. Sammy. A ponte. Uma faixa em homenagem ao Guga. Zé quebrou o transe, mostrando que as 27 primaveras e a dinheirada que administra o transformaram em um homem de decisões de impacto. Ordenou a meia-volta.

O comandante atendeu prontamente. Girou todo o timão para a esquerda, como quem dá um cavalo-de-pau. Uôôôôôôôô.... Sem vômitos, pois, tratam-se de adultos. À uma e meia o Mutley não era somente uma silhueta manchando o visual da Beira Mar. Na verdade, desde meados de 2000 que ele não mora mais ali. Ali moram seus pais, pomba! Ele está em São Paulo, desfilando seu senso de humor e causando sensações estranhas no microcosmo alternativo. Ainda espera com mais ansiedade o novo do Teenage Fanclub do que o décimo-terceiro. Alheios ao desfecho dessa comovente polaróide de amor fraternal, casais responsáveis abandonaram o barco. Deles é que iríamos falar mal na segunda parte da viagem.

Ao colocar o pé direito na murada, deu para ver o que está escrito na camiseta rosa de Mutley: "Lésbica." O maior desgosto para um cara que veste algo assim é não despertar comentário. Nada falei. Não precisou, algum desavisado já caiu no truque. Tentei começar o milênio impregnado de vibrações positivas. Com a cabeça infestada de aromas e o pensamento embargado por gesto tão nobre - abortar o ponto alto da festa só para pegar o amigo goiaba - tive a nítida certeza de que preciso voltar para essa cidade e, aqui, realizar minha grande obra. Seja um livro, uma horta ou uma câmara de defumação. Olha a ponte aí de novo.
(por Emerson Gasperin)

31.10.02

Os bodes do presidente
Marques Casara
Domingo à noite eu estava sentado numa fileira de cadeiras dispostas em um dos auditórios do hotel Intercontinental, no centro financeiro de São Paulo. Umas 200 pessoas esperavam o presidente eleito, a maioria formada por representantes de governos estrangeiros. À direita eu tinha um gringo que não conseguia ficar sentado. Nervoso, olhava o relógio e perguntava o tempo todo: viene el presidente?
Si, si, viene el presidente, eu respondia.
Meu pensamento estava longe. Pensava: Ele vai levar os bodes? Será que vai mesmo levar os bodes?
Lá na frente tinha um telão retransmitindo a Globo: comentaristas informavam sobre a apuração. Na minha esquerda estava minha mulher, enrolada numa bandeira vermelha e branca. Ao lado dela, uma senhora chorava com abundância. Uns 60 anos de idade, bem vestida, advogada. Repetiu dezenas de vezes a seguinte frase: “fomos muito discriminados, fomos muito discriminados”. Depois contou que é uma pessoa rica e que há 15 anos ficou amiga de Marisa da Silva. Tudo mudou a partir de então. Decidiu abraçar a causa operária. Virou motivo de chacota e preconceito no bairro de elite onde vive.
- Todas as minhas amigas me abandonaram, mas agora nós vencemos.
E chorava lagrimas que contivera durante décadas.
Duas fileiras adiante estava a mulher da América Central, corpo todo marcado pelos combates na selva. Guerra química aplicada pelos americanos, segundo disse, e que deixou sua pele como a de um crocodilo. Ao lado dela tinha um homem muito velho com um desenho estranho no braço.
- O que é esse desenho?
- Não é desenho, filho. É um número. Um dia fui um número no campo de concentração....
Pensei: tem aqui uma turminha bem heterogênea.
Mais a frente tava o Zé Dirceu, o Mercadante, a Marta. Quando a Benedita entrou o auditório quase veio abaixo. Poucos minutos antes,na TV, Lula havia dito que Benedita era a primeira negra a assumir um cargo de governadora, e que isso era tão importante quanto a abolição da escravatura. Disse com as palavras dele, carregadas de emoção e que não consigo reproduzir.
- Viene el presidente? Si, viene!!
E eu com a idéia fixa: será que vai levar os bodes?
Os pasteizinhos haviam terminado e só restavam farelos nas bandejas quando o Lula entrou no auditório. Seus olhos brilhavam de um jeito que nunca vou esquecer. Todos levantaram, bateram palmas, cantaram, gritaram e deram graças. Falou 15 minutos. Não consegui prestar atenção. Pensava nos bodes. Passei o segundo turno inteiro pensando nos bodes do Lula.
Faltava um mês para a eleição quando ele tocou no tema. Estava na chácara que tem São Bernardo, sentado numa grande mesa de madeira ao ar livre, a espera do almoço dominical. Fazia um sol de rachar e era um dos poucos dias de folga do candidato. As 10 da manhã Marisa havia decretado: é proibido falar de trabalho. E ai, é claro, todos ficaram sem assunto. As crianças jogavam bola no quintal, as mulheres preparavam a salada, os homens ajudavam no fogão. Música caipira no 3 em 1. Fiquei pensando se era o mesmo 3 em 1 que o Collor havia dito que era melhor que o dele. Deveria ser, pois a sonoridade era péssima.
O Lula tava sentado na grande mesa. Dia de folga, nem pra cozinha foi.
- Sabe, tem uma coisa que às vezes eu fico imaginando – disse ele.
- São esses meus bodes que eu tenho aqui na chácara, essa meia dúzia de bodes que tão ali naquele cercadinho.
Abriu os braços e fez um movimento amplo, como a libertar os bodes do pequeno curral.
- Eu fico pensando nesses bodes todos pastando naquele gramado que tem em volta do Palácio do Planalto, aquela graminha verde e tenra que tem em volta da casa do presidente.
E riu da própria piada. Pegou um violão que tinha em cima da mesa e caminhou até a rede. Pediu para o filho trazer o outro violão e ficaram lá, ensaiando uma moda.
Segunda feira passada falou na televisão ao meio dia, na condição de presidente eleito. São Paulo parou. As pessoas que caminhavam no centro se amontoaram em frente aos bares para assistir o pronunciamento. Os funcionários deixaram de lado o que faziam e ligaram a televisão, o rádio de pilhas. Os taxistas do ponto deixaram a conversa de lado e aumentaram o volume do rádio.
O que está acontecendo?
É o Lula, o presidente. Está fazendo o pronunciamento.
Não era a final da copa do mundo. Era o presidente agradecendo ao povo. Não falou dos bodes. Mas falou de união, de respeito, de dignidade. Falou de esperança.
Sinto-me um bode libertado.
(por Marques Casara)

17.10.02

Cidade dos homens
Marques Casara
Muita gente não gostou. Também quero dar minha opinião. Não acho que a série seja ruim. Acho até muito boa, bem escrita e bem dirigida. Esteticamente requintada e muito bem fotografada. Tem poucos efeitos especiais e usa muito a câmera na mão, o que dá esse efeito realista. Acho também que a TV Globo deixou para trás boa parte daquela mania de retratar um Brasil irreal, inclusive no Jornal Nacional. Na linha de show, as telenovelas há muito se tornaram um produto de grande valor cultural. Têm um papel central no processo de formação do imaginário brasileiro, o que é maravilhoso. Temos a mania de ver a cultura popular por uma perspectiva elitista e extremamente conservadora, baseada em modelos lineares. Conhecemos um pouco mais do que nosso próprio bairro e gostamos de palpitar a partir de valores preconcebidos. Numa perspectiva teórica, acho que a base da transformação social não está no emissor (TV Globo), mas no receptor (nós e as donas de casa). Cidade dos homens retrata o dia-a-dia a partir do receptor das mensagens e dos excluídos socialmente. Por isso achamos uma merda. Pertencemos a uma classe média que não gosta de ser esquecida na programação. Quando acontece, nos apavoramos. Estão de parabéns a TV Globo e a produtora O2.
Por Marques Casara

30.9.02

Mercado nervoso...


Frank Maia
Serviço de xarjincasa by Frank

24.9.02

É 2002 e você só quer um outro lugar para ir

Émerson Gasperin

Ao lado de Nelson Motta, Angeli inventou o rock brasileiro como o conhecemos hoje. Se o produtor, compositor, jornalista e outras profissões que não exigem diploma forjou condições favoráveis para que surgisse o mainstream, o quadrinista ocupou-se dos tipinhos do udigrudi – e teve papel fundamental na consolidação das tribos. Mais ou menos assim: até havia punks em São Paulo, mas ficou muito mais fácil identificá-los depois da criação de Bob Cuspe. Aliás, neguinho ficava com muito mais vontade de ser punk por causa do Bob Cuspe do que pelo João Gordo. Para os roqueiros decadentes, tinha o Oliveira Junky. Tornando os hippies engraçados, Wood & Stock. E metaleiros, rastas, groupies, gigolôs; de Angeli não escapou nenhum.
Ainda hoje, aparentemente sem intenção direta, ele continua a retratar com fidelidade os perfis que surgem nas prateleiras do pop mundial e que tentarão crescer e se multiplicar por estas terras. O último contemplado por sua sagacidade é o grupo The Vines. Sim, os moleques de Sydney que, segundo relatos inflados, irão reger o universo ao lado de Strokes, White Stripes e The Hives. Angeli nem sabe disso, mas, toda vez que desenha o Comando Revolucionário Kurt Cobain, de sua prancheta brotam também os diálogos e inspirações que norteiam a existência e o faturamento dos kids australianos. O feito do cartunista só não merece mais relevo porque qualquer roteirista mixuruca bolaria um troço similar aos Vines.
Os caras parecem mais fictícios – no sentido de “elaborados” por alguém – do que os Gorillaz. O release oficial da gravadora sobre seu disco de estréia, Highly Evolved, informa: “O álbum soa como um adolescente isolado que passa o tempo ouvindo álbuns clássicos através de fones de ouvido, em volume letal, até que as influências mais cruas o levam a um gravador de quatro canais, vindas direto de seus corações e de seus amplificadores pulsantes”. Tirando a parte de passar o tempo isolado com amplificadores pulsantes, que é coisa da juventude esquisitona anglo-saxônica, poderia descrever também o Catedral, o Cogumelo Plutão, o Surto ou outro talento que esparrama sua genialidade pelo dial.
Festejou-se, então, uma suposta semelhança com o Nirvana (com certeza dono de um dos tais “álbuns clássicos” ouvidos pelos fones de ouvido do adolescente), provocada principalmente pela pegada grunge de Get Free. Para o bem da criançada, a propaganda cometeu um equívoco, pois aquilo é puro Stone Temple Pilots. De resto, o mais próximo que os Vines aproximam-se de Kurt Cobain é ao remeter a Meat Puppets (que o suicida adorava) no rock Sunshinin. Ouve-se, isso sim, é muita balada (algumas com solo de guitarra e tudo), um skazinho (Factory) e rocks passageiros como Ain’t No Room, In The Jungle e 1969 – que, com seus seis minutos de duração, é um épico de uma profundidade que uma formiguinha atravessaria com água pelo joelho.
É nas letras, porém, que os Vines confirmam suas ligações com o Comando Revolucionário Kurt Cobain. São 18 “yeah”, 18 “ah”, cinco “oh e 36 “hey” em seis das 12 músicas que compõem o CD, algumas com mais de um requinte onomatopaico. Nesse quesito, Factory é imbatível, com um refrão que berra (de acordo com a grafia no encarte) “aaaaaaaaaahhhhhh hey ah hey”. Ai, ai. Quanta injustiça com o Silverchair, que ainda ostenta um drama pessoal e intransferível a lhe emprestar pungência. Seria o caso de recomendar Echo Dek, do Primal Scream, se o fotógrafo e videasta Matias Maxx não tivesse tatuado “dub” na canela e descoberto que a palavra pode ser lida de trás para frente no espelho. Enquanto ele se exibe levantando a calça em sapatarias, fixemo-nos em Evil Heat, a nova tiração de onda “screamadelica”.
(por Emerson Gasperin)

4.9.02

Serviço de Xarjincasa do Frank


Frank Maia

23.8.02

Sobre Paris
(duas ou três considerações, de rua ou de sonho)
Adriane Canan
"Os pés em Paris/Negros como o breu da noite/ Os pés em Paris/ Panos coloridos como um sábado/ Os pés em Paris/ Negros olhos transfigurados num ocidente antropófago/O menino é romeno, chora na mão pelo dinheiro que pede/ Chora a mãe no ventre pelos filhos que carrega/ Choram os pés em Paris/ (Barulho do metrô) /Silêncio nas ruas sepultadas de história/ O peso da cultura nos olhos absortos do intelectual/ E a bicha velha que importa o corpo-menino-asiático por pão e sexo/ O rio gelado e os turistas medíocres que posam de ricos ao som de Edith Piaf/ Os grandes pintores pendurados nas paredes do Louvre/ (Barulho de passos no corredor)/ Arte vale muito?/ A Torre Eiffel e os souvenirs de pobre/ A Place Vendome e a morte da nobre-plebéia-donzela-prostituta que trepava com o milionário egípcio/ Armani,Mont Blanc/ O homem aluga o menino para pedir esmolas/Os pés em Paris/ (Sonho com o Pablo)/ As escadarias de Nogent-Sur-Marne e a tranquilidade na casa da Irina/ As putas-travestis-argelinas do Kadet/ Fotos pra ficar na festa/Os olhos azuis da Lara percorrem a escola de artes/ E a alemã ex-comunista foi para os Estados Unidos do World Trade Center/ (Penso na Amanda)/ O português arrota arrogância e come seus próprios eus/ As baianas são negras como os negros da Estação Les Halles/ Os andinos não recebem palmas/ Os judeus fazem doces no Mares e jogam bombas nos palestinos/ Enquanto o Mc Donalds de Paris tem cabelo no Big Mac/ A França vota numa eleição silenciosa como a morte/Sem pombos/ Uma capa de chuva verde-limão e um dia livre para compras em Paris/ Pausa."

Adriane Canan
Cachorrinho

Giancarlo Proença

A fila de carros parecia estar parada há horas e um homem lá pelos seus trin-ta anos, sentado confortavelmente no banco de seu automóvel de luxo, olhava para o céu. As nuvens carregadas ao Sul, uma réstia de sol dando adeus ao dia a Oeste. O pen-samento do homem, pelo franzido da testa e batucar nervoso ao volante, era pura preo-cupação. Com a chuva que vinha dali a pouco, com a hora de vida que o engarrafamento lhe tomara, com a safra de soja, com a cotação da Bolsa de Chicago e o preço do dólar em Taiwan.

Foi quando a menina, descalça no asfalto ainda quente de fim de tarde, parou ao seu lado e também olhou para o céu, no mesmo ponto em que estavam os olhos do senhor. Sorrindo inocente, observou:

– Aquela nuvem parece um cachorrinho.

17.8.02

Verdades
Fábio Bianchini
Certa vez, por força de uma série de circunstâncias, eu estava na casa de uma amiga minha, com a qual eu não tinha nenhum envolvimento romântico-sexual. E descobri que é verdade. Enquanto esperam telefonemas, mulheres fumam, andam de um lado para outro da sala, enchem a boca de água, conjecturam se a pessoa não está ligando para o número errado e ficam irritadiças. E acabam elas telefonando. Sim, todo mundo sabe disso, mas é um “todo mundo sabe disso” tão sério que quem nunca viu pensa que é um clichê mítico. Mas aí pude observar o fenômeno de perto, em ação. Em ebulição. Ela fazia perguntas, eu respondia e tomava esporro por causa disso.Talvez fosse o caso de comprar chocolates. Elas gritam “yes” e andam com sorrisos bobos. Foi quando eu vi que talvez soubesse algo a respeito de mulheres, afinal.

No começo, foi só uma revelação divertida. Mas em seguida eu me liguei. Se essa parte do folclore é verdadeira, talvez todo o conhecimento bagaceiro acerca de mulheres que eu descartara a vida inteira pudesse ser útil. Claro. Como levei tanto tempo para pensar nisso? Aqueles ditados proferidos com ar de verdade absoluto. E o pior é que não consegui lembrar deles. Porra, eu sempre fiz piada e ridicularizei isso tudo, mas não lembrei de nada quando precisei.Como era? Mulher na serra é igual a... a que mesmo? Pensei em ligar pro sindicato dos caminhoneiros e pedir um catálogo das melhores frases de pára-choque, mas tive uma idéia melhor.

No dia seguinte, fui para o estádio. Era dia de clássico da cidade. Comprei ingresso, amendoim, pipoca, entrei, acompanhei o jogo das arquibancadas e, lógico, acompanhei a torcida que estava a meu redor, mas sem realmente me importar com o resultado. Essa é a vantagem de morar em uma cidade para cujos times eu não dou a menor importância e, sinceramente, gostaria que todos se fodessem. Minha missão não era esportiva.

Quando a partida terminou, empatada, sentei-me no bar do lado de fora do campo. O zero a zero chato e desinteressante facilitou a minha vida. Se fosse diferente, a euforia da vitória ou a frustração da derrota manteriam o futebol como assunto nas rodas de conversa por ainda mais tempo, mas o jogo não rendeu muito papo e logo cheguei aonde realmente queria: falar de mulher.

Bebi muita cerveja, resmunguei, reclamei de Ana o quanto pude. Enchi o ouvido do meu novo melhor amigo, Jorge, com histórias de como eu era bom com ela e como ela me tratava mal. Outro grande camarada, Mendonça, também ouviu atentamente e aproveitou para nos contar de como sofria por Dulce.

A partir do segundo engradado, começou a funcionar. Pérolas da sabedoria popular, extraídas do mais puro chauvinismo, fluíam. “O negócio é sempre negar até o fim”, aconselhou Jorge. “Não pode ser bom com elas. Se a gente for bom, elas fazem de gato e sapato”, recitava Mendonça. “Mulher é assim”, explicava Jorge. “Tem que fazer assado”, prescrevia Mendonça. E eu anotando tudo mentalmente.

Saí de lá cheio de idéias. Estava tudo claro, fazia todo o sentido. Eu agira como um imbecil durante toda a minha vida amorosa e sexual. Antes dela também, o que adiou-a em alguns anos. Lógico. Como eu não vira tudo aquilo há mais tempo? Mas tudo ia mudar. Agora eu já sabia exatamente o que fazer, o que dizer. Ana nunca mais iria me fazer de bobo. E, de certa forma, eu seria melhor para ela, já que, afinal de contas, iria tratá-la do jeito que ela realmente queria. Assim, seríamos felizes para sempre.
Fracasso total. Ana acabou agarrando o maior idiota que eu conheço na minha frente e na de mais um monte de gente, para ter certeza de que eu não teria como escapar da humilhação. Deu tudo muito errado.

Como era possível uma coisa daquelas? Eu tinha ido em busca da sabedoria de oráculos, mas em vez disso, ganhei uma receita de fracasso. Na semana seguinte, voltei ao boteco do lado do estádio. Era o jogo de volta do clássico, mas do jeito que o meu humor estava, seria besteira entrar. A qualquer momento eu poderia falar alguma bobagem que, no meio da torcida, colocaria minha integridade física em sério risco. Em vez disso, esperei o fim da partida já no bar, já atolando o cérebro em cerveja. Mais uma vez, eu não queria futebol.

Queria meus direitos de consumidor, queria reclamar dos palpites que tinham vindo com defeito. Dali a pouco, chegaram Mendonça e Jorge, reclamando muito e acompanhados de um terceiro companheiro meu para toda a vida, Miltão. O time deles perdera. O assunto que eu queria levou muito mais tempo para engatar do que na semana anterior, mas chegamos lá. Contei tudo o que aconteceu. Miltão limitou-se a balançar a cabeça e comentar:

- Mulher é foda.

Todos balançamos a cabeça. Só pude concordar e concluir que, agora sim, já sabia tudo o que há para ser sabido sobre elas. Mulher é foda.
Texto de Fábio Bianchini

23.7.02

serviço de xarjincasa


18.7.02

A cadeira voadora (micro-reportagem)
Dauro Veras

Ricardo praticava vôo livre no Rio Grande do Sul. Piloto exímio de asa-delta. Um dia, a fatalidade: acidente e tetraplegia. Perdeu os movimentos do pescoço pra baixo. Desenganado pelos médicos brasileiros, foi salvo por sua dupla nacionalidade. Mudou-se pra Lucerna, Suíça, e lá fez um tratamento de primeira. Fisioterapia, carinho, persistência. Pouco a pouco recuperou os movimentos da cintura pra cima. O sonho de voltar a voar continuava aceso. Conheceu o pessoal do Club de Vol Libre du Salève, em Genebra. Maravilhosos "malucos". Organizam vôos solo de parapente pra cegos, com ajuda de rádio. Inventaram uma cadeira de rodas especial, com proteções laterais e amortecedores que permitem a paraplégicos voar em segurança. Ele apostou nessa. Subiu o Mont Salève (1.375 m) e saltou sozinho. Belo vôo, pouso perfeito! Ricardo pratica vôo livre.

15.7.02

Pura sorte
Dauro Veras



1.
Chega a pé. Sol quente, uma e meia da tarde. Casas geminadas sem jardim. Ninguém por ali, só o menino brincando com bolas de gude na calçada.
- Seu pai tá em casa?
- Tá.
Mão no bolso. Nota de cinco.
- Tome. Pra comprar de bala.
O garoto pega o dinheiro, corre para a venda e some de vista.
Sobe o degrau e empurra devagar a porta da frente, entreaberta. Na sala, um homem vê tevê sentado numa cadeira de balanço de plástico trançado. Sorri para o desconhecido, meio sem saber por quê, e se levanta.
- 'Dia. Posso ajudar?
- Licença. O senhor é Joaquim dos Prazeres, do sindicato?
- Eu mesmo.
- Vim lhe trazer uma encomenda.
Dois tiros certeiros. Um no coração, outro na cabeça. Guarda o revólver e sai caminhando sem pressa.

2.
Demorou, mas um dia falhou. Munição velha. O sujeito reagiu, foi preciso usar arma branca. Confusão, gritaria, fuga rápida. Levou rasteira na esquina e foi algemado pelos soldados de polícia. Na prisão, o pão que o diabo. Quebraram-lhe os dedos da mão direita com cabo de fuzil, um a um. Meses depois, grade serrada e rua.

3.
Sol quente, duas da tarde. Dois meninos batem bola no campinho. Faz sinal e eles vêm.
- Conhecem Mané das Dores?
- É meu pai. Tá em casa, aquela verde ali, ó.
Duas cédulas de cinco, eles pegam rápido. O mais novo aponta a atadura na mão do homem:
- Que foi isso?
- Acidente de trabalho. Mas dei sorte. Sou canhoto.
Os meninos saem correndo para a venda. Ele caminha em direção à casa verde e empurra a porta em silêncio.

SAPATO (CONTO)
Giancarlo Proença
Ninguém jamais soube explicar o porquê, mas minha prima Gedi Marizete não suporta enxergar solas de sapato. Basta ver um chinelo virado que ela se desespera, corre, desvira e só então suspira com um jeito de quem salvou o mundo da hecatombe. Minha bisavó Davina, por quem Marizete foi criada, dizia que chinelo virado dava má sorte, que causava a morte de alguém da família, um equivalente aos sete anos de azar ao se quebrar um espelho. Todos na família tentaram tirar essa mania de Marizete, já que deixava a moça aflita quando não havia como desvirar um sapato sem causar vexame.

Como a vez em que um casal de amigos de meu pai chegou da serra para nos visitar na praia. Havaianas nos pés, o casal logo se refestelou nas redes da varanda, na velha casa à beira-mar. Obviamente, os chinelos foram largados de qualquer jeito enquanto eles embalavam na rede. Assistindo a tudo pela janela, Marizete suava bicas, tremia as mãos e contraía os lábios enquanto na sua frente o pé esquerdo de uma Havaiana mostrava sua sola azul calcinha. Minha vontade era de ir lá, desvirar a sandália eu mesmo e acabar com o sofrimento de minha prima. Mas não podia invadir a privacidade das visitas, eles na rede, namorando, e eu indo virar um chinelo. Ridículo. Mas Marizete deu um jeito de passar pela varanda, quase roçar o corpo na rede, dar um chute de leve na sandália e suspirar aquele suspiro de sempre.

Não havia cristão que lhe tirasse essa mania. Nem pai, nem mãe, nem avó, nem ninguém. Fomos todos obrigados a admitir nosso fracasso, a abandonar a cruzada em favor, se não da paz de espírito de Marizete, da nossa própria. Éramos obrigados a nos vigiarmos enquanto ela estivesse em casa, cuidar com a posição em que ficavam os sapatos descalços, a forma como os guardávamos. E mesmo assim, ela passava os armários em revista duas ou três vezes ao dia, para se certificar de que as solas não estavam aparecendo.

Só fomos entender a obsessão de Marizete no dia em que, assistindo tevê, vimos o general-presidente sentado na Granja do Torto, calças largas de montaria e chicote na mão, apoiava o pé descalço em uma alpercata virada com a sola para cima. Nos olhamos e viramos para uma Marizete aflita. Todos, ela e nós, experimentando uma nítida sensação de que, se pudéssemos virar aquele sapato, tudo seria bem diferente em Brasília.

13.7.02

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***

Tão banal é a solução final

Os programas de auditório repetem o ritual até hoje. O apresentador anuncia o artista para lançar seu novo trabalho, "que já é disco de ouro", ou seja, já vendeu 100 mil cópias. Quando se é criança, a questão entra para o rol daquelas perguntas desimportantes que só voltam a ser lembradas anos depois, ao se esbarrar com a resposta: "Como já pode ser disco de ouro, se nem chegou às lojas ainda?". Mais tarde, taludito, descobre-se: o número de cópias que garante o disco de ouro é estabelecido com base nos pedidos dos lojistas. O fato de um disco ser de ouro não significa que 100 mil pessoas compraram tal disco, e sim que as lojas encomendaram 100 mil unidades dele.

Graças ao polêmico projeto que obriga editoras e companhias fonográficas a controlar de algum jeito o número exato de produtos que despejam no mercado, volta-se a discutir o processo - e o mais engraçado é ver a cara de "eu não sabia que era assim" de quem, por ofício, deveria saber como é que as coisas funcionam. Partindo do pressuposto de que são enganados pelos seus patrões, os artistas querem aferir suas propriedades intelectuais. Lobão e Beth Carvalho à frente, entregaram um abaixo-assinado da categoria ao Planalto. A proposta é de que se numere ou se assine lotes de CDs e livros para evitar a evasão de direitos autorais e ter uma percepção real de seu desempenho no mercado.

Do outro lado, está a classe patronal. A Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) foi rápida: desqualificou os termos alegando que seria impossível cumpri-los, ameaçou com aumento de preços e baixou o valor do disco de ouro para 50 mil unidades (!?). Para justificar a discrepância entre o que é divulgado como vendido e o que é efetivamente vendido (com os direitos devidos repassados ao autor), diz que "distorções são passíveis de acontecer nesse método". Por fim, mistura as bolas e desenterra o medo contra o verdadeiro problema do setor, a pirataria. Acuados, artistas vão à público retirar sua assinatura da lista de Lobão dizendo que não imaginavam que a solução apresentada seria tão barulhenta. Desmoralizam-se todos.

Um amigo que tem uma banda de rock está doido para participar desta discussão. Como um desesperado, procura uma gravadora que o contrate. Nem liga com a hipótese de ser roubado. Quer porque quer ter seus discos distribuídos em tudo quanto é lugar, que o jabá impulsione suas canções na rádio, que seja um sucesso tão grande que desperte a desconfiança sobre o que recebe de direitos. Aí sim, ao alcançar a status de "produto lucrativo para ser fraudado", dirá o que pensa desse lance muito doido de disco, número, ABPD, pirataria, fama, assédio, drogas e time de futebol. Não virá com lei ("rock não combina com lei", prega), decreto ou exigências. Seu discurso - ou entrevista coletiva - entrará entrará para a jurisprudência como uma cristalina demonstração de fé no livre-arbítrio.

Provocante, começará afirmando que quem não faz sucesso não precisa se preocupar e tem mais é que torcer para ser pirateado, pois será a única forma de a posteridade tomar conhecimento de suas existências. Relativizará com cinismo expondo que não é correto mexer em relações entre artista e gravadora que estão deixando ambas as partes satisfeitas, com falcatrua ou não. E desafiará seus colegas a tomar a mesma atitude que ele. Doravante, abrirá mão de seus direitos autorais em prol da gravadora, dos piratas e de quem mais se dispuser a fabricar e vender seu disco. "Eles que se matem", desdenhará. "Meu negócio é fazer show, tocar ao vivo. Nunca vivi de direitos autorais", encerrará, atingindo também "todas essas bichinhas metidas a DJ". Com o rock não se brinca.
A TV e a rachadura
Dauro Veras

Nem bem os carros com dizeres “imprensa” estacionaram, os repórteres e cinegrafistas começaram a circular nervosos pela praça do Palhano. A cidadezinha cearense ganhara notoriedade repentina com os tremores de terra. Em vez das cadeiras de balanço na calçada, o povo agora conversava em animadas rodinhas perto das barracas do exército. Uns poucos se recusavam a sair de casa, não ligando a mínima pra escala Richter.

Baterias checadas, luz e batom ok, cabelo ajeitado. Gravando. Depoimentos do geólogo, do militar, do prefeito, da dona de casa. Plano geral da igreja, da pracinha, do acampamento. Detalhes do jumento, do menino buchudo, da panela no fogo improvisado. A repórter pergunta sobre os danos e escuta, meio decepcionada: “Coisa pouca”. Resolvem circular. De repente o cinegrafista brilha os olhos: “Caralho!, olha só o tamanho da rachadura naquela parede!” A equipe se aproxima e encontra o velho de chapéu de palha fumando o palheiro na rede da sala.

- Bom dia, senhor! A casa é sua?
- É sim senhora, fique à vontade.
- A gente pode gravar os estragos? – sem esperar a resposta, o cinegrafista liga a câmera.
- Mas essa rachadura aí é antiga, minha fia...
- Pega a igreja no fundo, Josias!
- Faz vinte e sete anos que a parede cedeu mode a chuva...
- Isso, enquadra a rua! Três, dois, um... gravando. Os moradores da cidade de Palhano, no Vale do Jaguaribe, despertaram hoje com um grande susto. A terra tremeu! E as paredes de suas casas agora ameaçam desmoronar.
- ...
- Seu Severiano se recusa a sair de casa, apesar do risco de desabamento. O que o senhor está achando do abalo sísmico?
- Até que ajuda a embalar a rede, né?
- O senhor não tem medo de morrer soterrado?
- Faz medo, não, Deus é pai. Essa rachadura já tá aí faz vinte e sete anos e nunca...
- Corta, Josias! Na edição a gente ajeita, vambora. – Saem ligeiro.
- Êta povinho avexado...

12.7.02

ALMA
Adriane Canan

Irina tinha a cabeça baixa e a alma quebrada quando entrou na sapataria. Sentiu que estava suando e esfregou as mãos úmidas na blusa com força. Só então olhou para trás do balcão do pequeno estabelecimento, abarrotado de sapatos esquecidos, de jornais velhos pendurados nas prateleiras de madeira e de sacolas com fechos quebrados. Ao encontrar o olhar daquele homem alto e gordo, de bigodes ralos grudados pela mesma cola que sufocava o ambiente, ficou com a impressão de que o sapateiro sabia de tudo. Encheu os olhos d’água, sentiu uma leve tontura, mas deu dois passos, apoiou-se no balcão e disfarçou tirando a sandália vermelha da sacola e abrindo um sorriso meio de lado: talvez não houvesse mais conserto, ela se enfiara num buraco sem saída, sentira-se presa, não dava para explicar:

- Aí, bom, quebrou. É isso!

Viu um filtro na mesinha cheia de ferramentas do sapateiro e pediu-lhe água. Precisava se acalmar um pouco antes de saber a opinião do homem. Perguntou se podia sentar. Ele apontou o banquinho forrado de couro. Sentou-se, ajeitou a bolsa no colo e ficou observando o sapateiro que analisava o calçado.

Irina sabia que seria difícil aceitar que terminasse assim, e não tirava aquilo da cabeça. Era uma ótima esposa, fazia tudo para que os fins de semana fossem maravilhosos e que os programas feitos com o Francis tivessem todos os ingredientes daqueles inesquecíveis. As fotos comprovavam todas as aventuras que viveram juntos: Arembepe, Bombinhas, São Francisco de Paula no invernão! Sem falar, é claro, do álbum do casamento: aquela era uma união apaixonada, cheia de coisas em comum, bastava ver a cara dos amigos.

E o movimento estudantil? As passeatas? O voto convicto no mesmo projeto político? E a reforma da casa? E O Tigre e o Dragão naquele domingo no cinema? O disco do Chico Buarque comprado num sebo em São Paulo? E ainda havia a história dela levar até o trabalho para perto de casa, para perto do Francis.
Os contra eram bem poucos. Ela não gostava de futebol – e aquele enorme pôster do Internacional colado na parede suja da sapataria! -, e era um pouco ingênua para certas coisas. Havia também aqueles sonhos de adolescente, que poderiam levá-la para longe. Mas não era coisa para briga tão feia. Ir para casas separadas, ficar sem se falar, e ainda, que merda!, o buraco e o estrago na sandália vermelha.

Bebeu a água em pequenos goles e sofreu quando o sapateiro puxou o salto com tanta força que descolou tudo.

- Está aqui o problema – disse o homem. Ele tinha uma voz bonita, forte e amiga. Tentaria resolver, mas o conserto era difícil. Estava quebrada na peça de metal entre o salto e a sola, a alma: - Problema assim, dona, pode ser até que não tenha jeito.

Ela sentiu vontade de chorar bem alto. Respirou fundo e disse meia dúzia de palavras que saíram sem pensar:

- Bom, vê o que dá pra fazer. Passo aqui amanhã ou semana que vem ou no próximo mês ou...

Levantou-se, colocou o copo no balcão depressa para não mostrar a tremedeira e pensou na Marina. Achou que seria legal dar um pulinho na casa da amiga. Perguntou se não estaria abusando se usasse rapidinho o telefone da casa, o celular estava sem bateria. O homem foi atencioso, alcançou o telefone até o balcão e explicou que a tinta branca dos números tinha desaparecido porque os dedos molhados de cola ou água castigavam as teclas há tempo. Ela disse que tudo bem e digitou com rapidez os números que tinha na memória. Pediu pra Marina se dava para passar lá e conversar um pouco.

Largou o fone no gancho, olhou com carinho para o sapateiro e agradeceu a gentileza. Queria muito cuidado com a sandália vermelha, passaria ali como combinado para saber do conserto. Encontrou a tarde já caindo na rua e entrou no carro com a cabeça doendo. Ligou o rádio e ouviu As rosas não falam, do Cartola, bem baixinho. Quando chegou no prédio da Marina o sol já tinha se posto, mas os apartamentos estavam com as luzes acesas.
(Adriane Canan)